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Post{o} de Vigia

13.04.23

O fenómeno da apropriação cultural não é novo. Todavia, ganhou destaque nos últimos anos com o crescimento do chamado movimento woke, tornando-se um debate politizado que envolve categorias como opressão, violência simbólica, mercantilização, descontextualização cultural, poder, privilégio, resistência cultural, apagamento cultural, autenticidade cultural, entre outras. O objetivo deste texto é, de modo sistemático, apresentar um quadro teórico coerente da questão da apropriação cultural.

O contexto do debate

Como afirma Fukuyama (2018), vivemos um contexto de polarização do campo social e político, transformado a partir do acentuar das questões pós-materiais e em que o ressentimento opera de modo determinante, seja o ressentimento daqueles que se sentem abandonados, os descamisados da globalização, que votam em partidos e políticos da direita radical populista, seja os ressentidos por razões de ordem identitária, como de raça, género, orientação sexual. É nesse contexto que emerge o movimento woke. Trata-se de um movimento de consciência social e política que se concentra na luta contra a opressão e na promoção da justiça social. Apesar de se ter popularizado nos últimos anos, especialmente após o assassinato de George Floyd, e se ter expandido para outras áreas, incluindo a academia, a política e a cultura popular, o termo woke tem origem na cultura hip hop dos anos de 1990 (Ahmed 2017). De um modo geral, o movimento woke centra-se na luta contra a opressão e a discriminação sob todas as formas, agregando o feminismo, o marxismo, o pós-modernismo e a teoria crítica da raça (Crenshaw 1991). Assim, o movimento woke visa uma maior igualdade e justiça social, através da identificação e desmonte das instituições sociais, como a lei e a educação, permeadas por mecanismos de opressão e desigualdade. Contudo, vários autores têm identificado os problemas do wokismo, ou seja, da sua transformação de movimento em ideologia, como seja a sua tendência para a atuação purificadora e moralista, do tipo igreja evangélica (McWhorter 2021 [ä]), para a tentativa de silenciamento de todos aqueles que não partilham (em parte ou no todo) da sua agenda, conduzindo, em casos extremos, ao cancelamento e à ostracização pública (McWhorter 2021, Bartlett 2021). Trata-se de uma grelha comportamental que identifica opressão e preconceito nas atitudes alheias, mas que pratica o mesmo método face aos demais, o que informa a sua vocação religiosa de “povo eleito”. A estas críticas juntam-se a de que o movimento tem um enfoque excessivo na identidade e na raça, ignorando outras formas de opressão, como sejam a classe social, a religião e a orientação sexual (aqui em muito menor escala, dado crescimento de atenção às questões da homofobia e transfobia), conduzindo a uma visão de mundo limitada e a uma falta de compreensão das complexidades da desigualdade social (Lindsay 2020). De igual modo, refere Alexander (2020), que o wokismo apresenta uma visão da sociedade excessivamente pessimista e desesperançosa, enfatizando a opressão e a injustiça em detrimento dos sucessos e das conquistas sociais. Isso pode levar a um desânimo e descrença em relação à possibilidade de mudança social significativa e positiva, bem como ao apagamento das mudanças sociais reais, ainda que insatisfatórias.

Por seu enfoque na opressão e desigualdade, a cultura ou movimento woke, tem um olhar crítico e ativo sobre a apropriação cultural, sendo responsável pela introdução da questão no debate público no Ocidente. Nesse sentido, emerge a defesa de que a apropriação cultural é uma forma de opressão que perpetua a marginalização e a exploração de comunidades historicamente marginalizadas, uma vez que a cultura é, no seu entendimento, um recurso valioso e um meio de resistência contra a opressão e que a apropriação cultural é uma forma de roubo desses recursos.

Uma definição de apropriação cultural

A procura de um consenso na definição de apropriação cultural implica reconhecer que esse consenso não é absoluto, havendo diferentes consensos dentro de uma moldura teórica alargada. Tal como refere Geertz (1973), a cultura é um sistema simbólico construído e reinterpretado pelos indivíduos que o utilizam. Esta ideia enfatiza o caráter dinâmico da cultura, derrogando visões excessivamente centradas na ideia de autenticidade e de posse cultural. Contudo, não obstante a inautenticidade das culturas, o facto de todas elas resultarem de processos de encontros, plasticidades e ressignificações, dentro desse fenómeno existe um outro chamado de «apropriação cultural».

Por apropriação cultural entende-se a adoção ou utilização, a título definitivo ou transitório, por parte de um grupo dominante, de elementos culturais de um grupo minoritário, muitas vezes sem considerar o contexto histórico e cultural em que esses elementos surgiram (v.g. Sontag 1964, Young 1990, King 2017), ato que pode ser visto como de violência simbólica (Bourdieu 1989). Esta dimensão conduz o problema ao primeiro aspeto da apropriação cultural: a opressão. O conceito de «opressão» emerge, como categoria teórica e discursiva, a partir da escola da Teoria Crítica, a qual propõe uma análise da sociedade capitalista com base em relações de poder, desigualdade e dominação. Adorno e Horkheimer (1985), eminentes figuras desta escola, compreendem existir a produção de uma cultura padronizada e homogénea – a “cultura de massas” – que serve os interesses do capitalismo, produzindo um efeito de subalternização das culturas dos grupos minoritários, as quais se tornam bens de consumo, perdendo parte do seu significado cultural. Como afirma Appadurai (1986: 6), os “bens culturais fazem parte do mundo dos bens maiores, mas têm as suas próprias propriedades especiais. São mercadorias com um passado, mercadorias que nos reclamam para além do seu valor de uso imediato, mercadorias que possuem significado”. É por tal facto que Crenshaw (1991) considera que a apropriação cultural pode ser vista como uma forma de “apagamento cultural”, uma vez que “envolve a retirada dos elementos culturais de seu contexto original e sua recontextualização em um novo contexto que pode ser completamente diferente do original” (p. 124). Isto significa transformar os objetos culturais em bens transacionáveis e descartáveis, o que carrega uma dimensão política, na medida em que as culturas dominantes vêm as culturas minoritárias como inferiores e, portanto, não lhes sendo devido o reconhecimento e o respeito. Isto implica, para Robert Young (1995), uma componente de dominação cultural, tendo em conta que decorrendo uma imposição da cultura dominante sobre a cultura minoritária (assimilação cultural), o que conduz à perda da identidade cultural do grupo minoritário, uma vez que lhes nega qualquer possibilidade de expressão autónoma. Fanon (1952) dá boa nota disso, sumarizando num excelente título Black Skin, White Masks.

Toda esta questão conduz ao reconhecimento de uma dimensão de poder, dominação e desigualdade entre as culturas que tomam parte do processo, não sendo uma mera cópia ou empréstimo de elementos culturais (Ziff/Rao 1997). Para estes autores, a apropriação cultural tem raízes imperialistas e coloniais, assentes na ideia de extração de riquezas das culturas subordinadas.

Apropriação como resistência

 Não obstante, há uma dimensão de resistência cultural no processo. Gramsci (1978) integra a cultura na luta de classes e na batalha cultural. Gates Jr. (2014) dá como exemplo a forma como os afro-americanos usam a apropriação cultural como uma forma de resistência ao racismo e à opressão. No mundo da moda, a incorporação de estampas e tecidos tradicionais africanos na moda contemporânea tem sido vista como uma forma de os estilistas africanos afirmarem a sua identidade cultural numa indústria da moda globalizada que tem favorecido, historicamente, os estilos e estética ocidentais. Neste caso, a apropriação cultural é vista não como uma forma de opressão, mas antes como uma forma de honrar e respeitar as raízes e influências culturais de uma determinada expressão artística ou cultural.

Exemplos de Apropriação cultural

Como mostra Scafidi (2005), entre outros autores, há uma componente material profunda na questão da apropriação cultural, já que muitas vezes as grandes multinacionais fazem uso da apropriação cultural para efeitos comerciais, sem darem o devido crédito e compensação aos povos de origem desses elementos. Isto resulta do facto de não existir um regime jurídico de posse cultural, uma vez que é, rigorosamente impossível, creditar elementos culturais a um povo de modo taxativo e de garante autenticidade. O hibridismo e o sincretismo cultural mostram como as culturas são sempre construções de elementos geograficamente situados e produto de tecelagem em dado momento e contexto.

Não obstante, é possível compreender a existência de elementos ligados a determinados povos. Um dos exemplos mais flagrantes nos Estados Unidos é o uso tido como indevido de coroas de penas (chamado no Brasil de cocar) na indústria da moda e do entretenimento, sendo visto como desrespeitoso e inapropriado por parte dos nativo-americanos (Deloria 1998). Outro exemplo recentemente introduzido no discurso sobre apropriação cultural é o yoga, uma vez que é, frequentemente, divorciado das suas raízes culturais e espirituais no hinduísmo e utilizada apenas para exercício físico, produzindo um apagamento do seu significado cultural (Singleton 2010). A religião Umbanda também detém elementos que apontam num sentido de apropriação cultural, uma vez que as divindades africanas, Òrìṣà e Vodun, são ressignificadas a partir do catolicismo, passando a ser representadas por Santos Católicos ou por imagens de tez branca. De igual modo, no meu entendimento, a transformação de Thor em personagem da Marvel é um exemplo de apropriação cultural de elementos religiosos e culturais para efeitos comerciais e de cultura popular que produz “apagamento cultural” (Crenshaw 1991).

Superar a apropriação cultural 

 A apropriação cultural não é, contudo, um fenómeno unívoco, unidimensionalmente um ato de poder branco, nem cobre a totalidade dos encontros culturais. A forma como os africanos da Costa do Benim incorporaram elementos europeus como as bebidas destiladas ou outros elementos comerciados por islâmicos e vindos da Mauritânia (Matory 2018), é um exemplo de apropriação cultural sem prejuízos. De igual modo, a cozinha de fusão que combina elementos de diferentes tradições culturais, tais como tacos coreanos ou sushi burritos, pode ser vista como um exemplo de hibridismo cultural que escapa à ideia de apropriação (Yúdice 2003).

No entanto, a questão central é como lidar com a apropriação cultural sem cair em discursos essencialistas sobre autenticidade e posse cultural. Não é possível aplicar uma grelha exclusiva de privilégio e de culpa branca à apropriação cultural – argumento que chamaria de culpa ancestral, focando nos crimes de antepassados para inviabilizar atos presentes –, pois isso seria um discurso simplista que não leva em conta a complexidade dos encontros culturais. Além disso, é difícil estabelecer normas jurídicas de proteção cultural, uma vez que as culturas são inautênticas e é difícil determinar quem tem autoridade para permitir o uso dos elementos culturais.

Uma abordagem mais sensata seria reconhecer que a apreciação cultural não é apenas uma questão de permissão para olhar, mas uma questão de procurar uma interculturalidade, um caminho de diálogo entre as culturas, bem como procurar formas de integrar os povos ligadas aos elementos culturais visados e integrá-los ou oferecer-lhes compensações, nos casos de uso comercial dos seus elementos. É necessário um esforço para compreender e preservar o contexto de origem dos elementos culturais, bem como uma aproximação honesta e respeitosa à cultura e história dos objetos envolvidos. Isso implica um esforço de ligação coerente à cultura de origem e a preservação da dignidade cultural dos elementos envolvidos.

Em resumo, a apropriação cultural é um fenómeno complexo que não pode ser resumido a um simples ato de poder branco. Embora seja difícil estabelecer normas jurídicas de proteção cultural, é possível evitar a apropriação cultural através de um uso respeitoso dos elementos culturais, compreendendo e preservando o contexto de origem e mantendo uma aproximação honesta e respeitosa à cultura e história dos objetos envolvidos. A chave para isso é o bom senso, um critério filosófico e ético difuso que pode ser aplicado em muitas situações culturais.

 

Bibliografia
Ahmed, S. (2017). Living a feminist life. Duke University Press.
Alexander, M. (2020). The new Jim Crow: Mass incarceration in the age of colorblindness. The New Press.
Appadurai, A. (1986). Introduction: Commodities and the politics of value. In A. Appadurai (Ed.), The social life of things: Commodities in cultural perspective (pp. 3-63). Cambridge University Press.
Bartlett, J. (2021). The tyranny of woke capital: How big business is waging war on conservatism. Encounter Books.
Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico (Vol. 6). Lisboa: Difel.
Crenshaw, K. (1991). Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, 43(6), 1241-1299.
Deloria, P. J. (1998). Playing Indian. Yale University Press.
Fanon, F. (2008). Black skin, white masks.
Fukuyama, F. (2018). Identity: Contemporary identity politics and the struggle for recognition. Profile books.
Geertz, C. (1973). The interpretation of cultures: selected essays. Basic Books.
Gramsci, A. (1978). Cadernos do cárcere: Maquiavel, notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
King, T. (2017). The inconvenient Indian illustrated: A curious account of native people in North America. Doubleday Canada.
Lindsay, J. R. (2020). The woke takeover of higher education: A guide for concerned parents, students, and taxpayers. Encounter Books.
Matory, J. L. (2018). The fetish revisited: Marx, Freud, and the gods Black people make. Duke University Press.
Singleton, M. (2010). Yoga Body: The Origins of Modern Posture Practice. Oxford University Press.
Scafidi, S. (2005). Who owns culture? Appropriation and authenticity in American law. Rutgers University Press.
Sontag, S. (1964). Notes on 'Camp'. Partisan Review, 31(4), 515-530.
Yong, Iris Marion. Justice and the Politics of Difference. Princeton University Press, 1990.
Young, Robert. Colonial desire: Hybridity in theory, culture, and race. Psychology Press, 1995.
Yúdice, G. (2003). The Expediency of Culture. Duke University Press.
Ziff, B., & Rao, P. V. (1997). Introduction to cultural appropriation: A framework for analysis. in Borrowed power: Essays on cultural appropriation.

 

11.10.22

A nova versão da Pequena Sereia trouxe mais lenha à fogueira das guerras culturais entre o antirracismo e o enraizamento identitário ocidental. Quem cresceu a ver os desenhos animados da Disney lembra-se de uma Arielle coincidente com os padrões de beleza inerentemente ocidentais. À primeira vista isto não seria um problema numa sociedade alemã, escandinava ou de leste europeu de 1990, mas para países como a Inglaterra, os Estados Unidos, Portugal ou França, com uma longa presença não-branca no interior das suas fronteiras, em resultado de um passado colonial, o tecido social há muito que era, foi cada vez mais sendo, multicultural e multirracial, situação que se estendeu a todo o Ocidente, com maior ou menor intensidade.

Convém ter presente que qualquer personagem de banda desenha ou de televisão e cinema, não se encontra independente de um conjunto de estereótipos. Evidentemente que não faz sentido Thor, enquanto divindade da mitologia nórdica (o seu uso como personagem Marvel é uma verdadeira apropriação cultural que não se pode desconsiderar) aparecer que não com características morfológicas nórdicas. Diferentemente é o caso, por exemplo, do Super-Homem, figura que ajudou a construir um ideal de masculinidade, ou um Capitão América, que veicula um ideal fenótipo norte-americano. Em ambos os casos, seria perfeitamente legítimo e inclusivo que pudessem surgir com etnicidade não-branca e até outras características, como acontece com o Homem-Aranha que não corresponde ao ideal do “capitão da equipa do liceu”.

Este facto abre, desde já, um debate para o que significa “inclusivo”. Numa visão mais radical woke, inclusivo seria substituir grande parte das personagens do universo televisivo, cinematográfico e de BD por figuras não-binárias e não-brancas com um uso de uma linguagem neutra em matéria de género, numa espécie de redefinição e reprogramação da cultura ao contrário. Numa visão mais moderada, visando uma abertura da sociedade à sua pluralidade, “inclusivo” significa dotar o universo das artes (e não só) de uma maior representatividade, espelhando a sociedade de forma mais sólida e atualizada. É aqui que entra uma Arielle negra e entra, também, em consequência, a defesa da identidade biocultural ocidental, que não tolera desvios da norma. É um imaginário que aceita sereias, anões, hobbits, duendes, anjos e santos, mas não aceita que não sejam brancos. E isto, ladies and gentlemen, é racismo.

Em segundo lugar, falemos da “apropriação cultural”. Uma vez mais, na esteira woke, o conceito tem sido empregue como referente a qualquer utilização vista como indevida de elementos culturais não-brancos por pessoas brancas, enquanto se exige uma aceitação do multiculturalismo. Nessa ótica, o multiculturalismo está para ser visto e respeitado, mas não para ser aderido. A lógica das interdições culturais, da edificação de espaços (“seguros”) livres da “branquitude” não deixa de ser purista. Além disso, é também essencialista, uma vez que desconsidera o mais elementar dos princípios das culturas: a sua natureza híbrida e inautêntica. No entanto, a “apropriação cultural” existe e é importante aqui no quadro das sereias. Quando os africanos yorùbá foram escravizados, levados ao Novo Mundo, levaram os seus cultos religiosos. Entre as várias divindades ia Yèmọjá, deusa da família, símbolo do matriarcado, das águas doces e salgadas. Na Bahia, devido às características da costa e ao facto do seu nome significar “Mãezinha cujos filhos são peixes”, o seu culto passou a estar associada ao mar de onde os pescadores tiram o seu sustento. Em virtude do crescimento e popularização do seu culto, Yèmọjá foi sendo transformada em Iemanjá, a santa branca dos mares do Brasil. O seu culto sofreu evidente “apropriação cultural”, e a deusa foi sendo ressignificada estética e cosmologicamente, perdendo a sua dimensão sexual e aproximando-se das santas do catolicismo popular. Esse fenómeno, que comporta, ainda, uma dimensão de racismo religioso, não parece preocupar tanto como uma Arielle negra, que é, no fundo, uma “vingança” poética por acaso.

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