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Anatomia da Palavra

Anielle Franco e a leitura marxista do antirracismo

Novembro 02, 2023

Anielle Franco, ministra brasileira da Igualdade Racial, e irmã de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada por (ao que tudo indica) forças bolsonaristas, é, tal como a sua irmã foi, uma importante ativista antirracista, com uma trajetória académica significativa na área, nomeadamente na North Carolina Central University e na Florida A&M University, instituições historicamente ligadas ao pensamento negro.

O pensamento e a ação de Anielle Franco são marcados por uma tradição teórica rica conhecida por Teoria Crítica, concretamente a Teoria Crítica da Raça, na esteira da qual se desenvolve noções como “racismo estrutural”, “opressão racial” e “intersecionalidade”, categorias que permitem uma compreensão e ação sobre as dinâmicas racializadoras das sociedades humanas, em particular nas sociedades de passado colonial e esclavagista, nomeadamente os Estados Unidos da América, onde o racismo deteve e detém uma força normativa profunda, sendo ao mesmo tempo estrutural, sistémico, institucional e legal. Basta lembrar as leis Jim Crow e o impacto atual das mesmas. No entanto, devido aos trânsitos entre a Universidade e os movimentos sociais, a Teoria Crítica foi adquirindo uma dimensão politizada, já que ela se propõe a ser um instrumento de transformação social, o que faz com que as categorias deixem de ser instrumentos de análise e passem a ser pressupostos ideológicos.

Devido às mudanças nas sociedades ocidentais, em particular no eixo norte-ocidental, as batalhas dos movimentos sociais passaram a focar-se, sobretudo, em questões pós-materiais, tendendo a desligar essas questões de questões materiais como pobreza. A leitura é, evidentemente, de inspiração marxista (pensamento que, de resto, está na base da Teoria Crítica), considerando que é preciso mudar a superestrutura, concretamente a cultura, para que ela mude a estrutura social de base. É nessa esteira que vamos encontrar uma hiperatenção à linguagem e ao pensamento, que levam a uma crença de que a sociedade muda por decreto e por policiamento público (cuja manifestação é o cancelamento nas redes sociais). É por isso que a pensadora negra @pretaderodinhas vem salientando as incongruências do ativismo de Anielle Franco e a sua equipa. Em setembro, Marcelle Decothé, assessora de Anielle Franco criticou a “torcida” do São Paulo, através das palavras “Torcida branca, que não canta, descendente de europeu safade... Pior tudo de pauliste”, escreveu. No dia de ontem, a ministra afirmou que o termo “buraco negro”, o qual define uma região no espaço com campo gravitacional tão intenso que também absorve a luz, é “racista”.

O racismo é, inegavelmente, um problema endémico das nossas sociedades, que precisa ser combatido. É preciso uma política intransigente de reversão de lógicas enraizadas de segregação. Tenho as maiores dúvidas que esta dinâmica de inspiração marxista, que produz uma dicotomia racial estanque e absoluta, numa versão reciclada da “luta de classes”, que passa por uma ação sobre a linguagem, uma desconsideração contextual e por uma dinâmica de purificação social do dissenso – em que não basta ser antirracista, é preciso que se o seja de uma determinada maneira, que exclui inclusive ativistas negros desalinhados com um conjunto de dogmas – seja o caminho. De resto, já dizia McWhorter que esta lógica capturou as populações negras e lhes é prejudicial. Em nome da liberdade e da justiça social, aceito visões contrárias e que até possa estar enganado.  

 

Brasil das guerras culturais

Setembro 25, 2023

O Brasil é, hoje, o exemplo mais completo da afirmação definitiva das guerras culturais como paradigma da vida política. Num país com índices de pobreza, fome, exclusão social e económica elevadíssimos, as batalhas voltaram-se para as questões morais, com uma luta intensa ao casamento homoafetivo, usando a Bíblia como instrumento e derrogando a separação de poderes e a laicidade.

Bolsonaro

Junho 30, 2023

O coletivo de juízes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tomou uma decisão histórica ao determinar o impedimento de qualquer candidatura a cargos políticos por parte de Jair Bolsonaro, pelo período de 8 anos. Essa medida foi tomada em decorrência de abusos de poder presidenciais visando ataques eleitorais nas últimas eleições, das quais saiu derrotado. Essa notícia é vista por muitos como um marco positivo para a democracia brasileira, revelando a robustez e a importância de uma das instituições fundamentais do país.

A decisão do TSE mostra que as instituições brasileiras permanecem com uma atuação independente e imparcial, protegendo a integridade do processo democrático. Ao impedir a candidatura de Jair Bolsonaro, o TSE envia uma mensagem clara de que abusos de poder não serão tolerados e que todos os candidatos devem se submeter às regras e regulamentos estabelecidos. No entanto, é importante ressaltar que o bolsonarismo não se limita apenas a Jair Bolsonaro. Essa corrente de pensamento e ideologia política possui uma base sólida de seguidores e simpatizantes, que compartilham as suas visões e princípios. Mesmo com a impossibilidade de uma candidatura direta de Bolsonaro, é provável que um candidato alinhado ao bolsonarismo surja,  dando continuidade à chamada "guerra cultural" pela conquista do coração do Brasil. A polarização política presente no país tem se intensificado nos últimos anos, e essa decisão do TSE certamente terá um impacto significativo nesse cenário.

LULA LIVRE, E AGORA?

Março 12, 2021

A libertação de Lula repõe a legalidade e o princípio do Estado de Direito, depois de um cárcere político com a conivência de um Sérgio Moro que, no engodo da ambição, acabou enganado pelo bolsonarismo. Mas e agora? É claro que uma eleição direta para o titular de um cargo político com a dimensão do Presidente da República, particularmente em regimes presidencialistas, transporta sempre uma aura de culto de personalidade. No Brasil, a situação vai além da dimensão carismática, fixando-se num plano de messianismo político evidente e pernicioso para a democracia. De Collor de Melo a Bolsonaro, de Lula a Dilma, vemos um mundo de trincheiras ideológicas, de deambulações entre líderes antissistémicos apelidados de "mito", e a figura do pai/mãe da "nação", mas jamais saindo do populismo.

Assim, embora a libertação de Lula possa levar o PT à tentação de recandidatar o ex-Presidente, tal decisão seria, a meu ver, um erro. A forma como decorreu a última campanha eleitoral com fake news, ataques de caráter, e combate cultural, em torno de uma figura sólida e institucional como Fernando Haddad, deixa antever uma campanha eleitoral difícil para Lula, especialmente porque a matéria de desacreditação de Haddad foi, precisamente, a associação direta com o anterior. É verdade que Lula ainda goza de imenso capital político, aparecendo num largo espetro social como o “pai da nação”, ao estilo populista getuliano, embora de esquerda. No entanto, uma boa parte do eleitorado conquistado por Bolsonaro foi dentro de uma onda “antipetista” representada em Lula.

Assim, o futuro da política brasileira poderá não passar pelo PT, mas antes por um movimento renovado de centro-esquerda, embora com o apoio daquele. Ou seja, o que o Brasil parece necessitar é de uma alternativa “à portuguesa”, capaz de jogar ao centro sem deixar de ter uma mão na esquerda. Isto tendo presente que o centro-direita se evaporou na “nova direita” mundial manifesta num nacionalismo económico-liberal e moral-conservador. Ninguém estaria mais qualificado para liderar esse processo que Fernando Haddad não tivesse este descapitalizado a sua imagem política nas anteriores eleições. A possibilidade avançada pela imprensa brasileira de que Haddad poderia surgir como número 2 de uma possível candidatura de Lula em 2022, deixa muito claro que Haddad se encontra excessivamente dependente de Lula e do PT. Guilherme Boulos e Ciro Gomes podem surgir como alternativas, embora lhes falte o carisma necessário para capitalizar um largo espetro eleitoral.

É, pois, previsível que o Brasil não consiga libertar-se da bipolarização PT-Nova Direita, não sendo de desconsiderar que, no quadro do populismo messiânico inscrito na cultura social e política do país, haja uma aspiração proto-religiosa de ver um combate maniqueísta entre Lula e Bolsonaro.

BOLSONARO: NEGACIONISMO E DISTOPIA

Março 27, 2020

O presidente brasileiro deu mais um passo na consumação da distopia brasileira. Ao negar categoricamente a pandemia do covid-19, apelidando-a de "gripezinha" e invertendo todas as recomendações da OMS sobre a necessidade de confinamento e distância social, incentivando a abertura das escolas, da ponte aérea e a retoma do normal funcionamento das instituições e do comércio, Bolsonaro oficializa o negacionismo embandeirado por Olavo de Carvalho, filósofo brasileiro radicado nos Estados Unidos, e tido pelo ideólogo do governo brasileiro em funções. A sua decisão comporta duas consequências de distinta natureza: uma político-ideológica e outra social. Do ponto de vista político-ideológico significa, como dito, a vitória do viés negacionista, cujos propósitos são, a bem ver, o de garantir a continuidade das instituições vitais, num país onde a taxa de mortalidade, por diferentes motivos, sempre foi elevada. Por essa razão, a relativização mascarada de negacionismo assume-se como uma estratégia sobretudo económica, procurando garantir que os setores vitais da economia brasileira continuem a funcionar: indústria agropecuária e as exportações. Ao mesmo tempo, pelas suas assimetrias sociais, económicas, demográficas e geográficas, o encerramento da rede escolar não permite a execução eficaz de alternativas como o ensino à distância. Em simultâneo, ocorre a pressão da económica e socialmente relevante rede evangélica, para quem medidas de confinamento representam o encerramento de igrejas e, com isso, uma quebra acentuada de receita oriunda das “correntes de cura”, do “dízimo” e outras formas de doação de fiéis.

Assim, com o “boi” e “Bíblia” ameaçadas, a estabilidade económica e social brasileira é colocada em causa. Convém recordar, ainda, que Bolsonaro, um saudosista da ditadura militar, sempre advogou a necessidade de redução da população brasileira, tendo sido essa, a seu ver, a maior falha do regime ditatorial brasileiro. Nas suas palavras “mataram pouco”. Ora, encurralado entre as pressões da bancada do boi e da bancada da Bíblia, Bolsonaro tem na pandemia a alternativa mais sólida ao programa falhado pela ditadura. Isto porque, em rigor, as características demográficas e geográficas brasileiras impossibilitam um policiamento eficaz do confinamento, mesmo que fossem colocados os militares na rua. Concomitantemente, a cúpula presidencial tem perfeita noção que o Brasil não possui uma rede de cuidados médicos capazes de lidar com uma onda de mortalidade ao nível italiano, tendo presente o que foi o cenário horrendo da “gripe espanhola” no Brasil em 1918, em que os corpos se acumulavam nas ruas.

Ora, entre um cenário de paragem económica de um país já de si numa situação instável e a ameaça do alastrar da pandemia em proporções incontroláveis, levando em conta a densidade populacional das áreas urbanas e o efeito “bola de neve” nas zonas periféricas (em particular nas “favelas”), o governo brasileiro opta por varrer o problema para debaixo do tapete, na expetativa de que, por artes mágicas, a crise passe.

Assim, ao negar a pandemia ao mesmo tempo que a sociedade e os governos estaduais vão tendo noção do problema, verifica-se um crescendo de instabilidade e desconfiança. Perante o cenário de alastramento epidemiológico, surge uma corrida aos supermercados e um açambarcamento generalizado. Quando tal fenómeno é conciliado com um atraso na resposta conjuntural, precavendo danos futuros, e sabendo que mais tarde ou mais cedo acabará por suceder uma paragem da indústria, decorrente e conjugada com a mortalidade elevada que se avizinha, compreende-se que o Brasil irá passar, muito provavelmente, por uma situação de crise de bens alimentares, incapacidade de resposta médica, inflação e caos social. Bolsonaro poderá tentar passar pelo intervalo da chuva neste cenário, imaginando-se a liderar o regresso da ditadura militar. Mas tal cenário não é garantido, haja visto que é cada vez mais evidente a irresponsabilidade das suas ações e palavras. Os escombros sociais do pós-Covid-19 poderão, em muito, recordar o cenário herdado da “gripe espanhola”. Convém recordar que no séc. XX somente a Segunda Guerra Mundial matou mais do que a “influenza”. No Brasil morreram cerca de 300 mil pessoas, entre elas o presidente, Rodrigues Alves. Convém recordar que a população brasileira, na época, rondava os 20 milhões de pessoas. Atualmente o país possui cerca de 210 milhões de pessoas. Sabendo que a taxa de mortalidade do covid-19 é superior à da “gripe espanhola”, e com uma densidade demográfica tão expressiva, é possível prever uma hecatombe sem precedentes no Brasil. A conjuntura entre terraplanismo, ultraliberalismo, radicalismo evangélico, saudosismo da ditadura e produção massiva de fake news, fermentam um cenário propício à devastação do Brasil como o conhecemos.

OS TAIS 89%: ENTENDER O ELEITORADO DE BOLSONARO EM PORTUGAL

Outubro 25, 2018

Um dos fenómenos sociais mais interessantes da ascensão de Bolsonaro, encontra-se na conquista quase absoluta do eleitorado emigrado para Portugal. Foram 89% dos votos. Em primeiro lugar, é preciso levar em consideração que esse eleitorado não compartilha um mesmo perfil sócio-económico, mas partilha, pelo menos, um aspeto central desencadeador do fenómeno migratório: a insegurança. Na sua esmagadora maioria, os brasileiros em Portugal realizaram a travessia do atlântico escapando ao clima de violência brutal que assola o país. Quando se leva em consideração as motivações eleitorais sabemos, até por experiência da geografia política europeia, que o fator segurança é determinante na forma como se constrói um eleitorado em torno de movimentos extremados, que manipulam o desejo quotidiano e primário por uma vida sem crime. Perante uma liberdade que é tomada como dado adquirido, a segurança torna-se o principal fator eleitoral. Um candidato que prometa acabar com o crime, num país atolado de cadáveres, é altamente sedutor. Esta narrativa ganha um contorno particular diante de uma população que vê uma brecha de possibilidade de regresso ao seu país. Aspetos ligados à perseguição política, aos abusos de poder policial, e a violenta inversão de políticas sociais não aparecem, em primeira mão, equacionados.

Em segundo lugar, temos um eleitorado que se auto-percecionada como tendo ascendido socialmente. Tratam-se de pessoas de baixa renda, pobres, que pela experiência de emigração conseguem obter renda maior, pelo que no conjunto de tais fatores não se reconhecessem mais como parte do eleitorado tradicional petista, em contraste com familiares, amigos e vizinhos que foram deixados para trás. Eles já não são pobres, são brasileiros da europa, são "europeus" no olhar do seu grupo social de origem, e assim se reconhecem. Ao mesmo tempo, muitos deles são colhidos pelo movimento de fake news via whatsapp.

Em terceiro lugar, temos um eleitorado recém-emigrado, uma elite económica brasileira que chega a Portugal fugida da violência. Uma elite historicamente construída no ideal da «casa grande e senzala», do fosso e da estratificação sociais, e assim ultra-conservadora que se revê numa parte significativa do discurso de Bolsonaro. Essa elite que culpa o PT pelos males do Brasil, olha para Bolsonaro como uma janela de oportunidade de regresso ao seu país, sabendo, ainda para mais, que aquele será um presidente que protegerá os interesses desse eleitorado.

DO ANTI-PETISMO A BOLSONARO NÃO VAI UM PASSO

Outubro 16, 2018

O MOTOR DESTAS ELEIÇÕES TEM SIDO, efetivamente, o sentimento anti-PT. Trata-se daquilo que o teórico Triaud chama de «memórias instituídas» que resultam de intencionalidades político-ideológicas que visam reforçar a identidade ou ideologia de um grupo. Se à primeira vista poderemos tender a não encontrar nestas eleições brasileiras respaldo desse quadro teórico, a verdade é que um mergulho mais cuidado na realidade sociológica e política brasileira revela, precisamente, o contrário. A forma como corrupção e PT foram associados, varrendo para longe o historial de corrupção como parte estruturante da política brasileira ab initio, revela a intencionalidade política dos seus difusores. O processo conhecido como Lava-Jato serviu de pano de fundo para uma campanha de desgaste da imagem do Partido dos Trabalhadores, tendo por climax o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula da Silva. Mais uma vez é varrido o contexto para debaixo do tapete. É preciso recordar que o impeachment de Dilma se baseou numa caça-às-bruxas, em suspeitas infundadas de corrupção por parte da então presidente do Brasil, suspeitas que nunca se vieram a revelar verdadeiras. Em abono da verdade, o que se sucedeu foi um estancar do processo, à medida em que o Lava Jato ia arrastando cada vez mais membros da teia golpista, envolvendo muito mais políticos do PSDB do que do PT.

No entanto, é preciso ter presente que as atuais eleições nada têm a ver com verdadeA forma como as redes sociais têm sido usadas no sentido de propagação de fake news merece urgente e profunda investigação, quer científica, quer político-judicial. Por ordem inversa de prioridades, inclusive. Esse caldeirão tem fermentado uma onda anti-petista como não há memória. A reboque da teoria da corrupção, a sociedade brasileira tem tirado do armário a sua homofobia, o seu racismo, a sua misoginia, jogando nas ruas e viralizando as tensões mais determinantes da sua história, cavando o fosso e fazendo eclodir um clima de violência. A militarização dos apoiantes de Bolsonaro é um fenómeno que se inscreve na longa tradição fascista-militar sul-americana, que se alimenta de uma lavagem da história dos regimes fascistas europeus. É, então, neste palco de um país conservador, homofóbico, racista, misógino e fortemente apoiado pelas agendas políticas das emergentes igrejas evangélicas, que o sentimento anti-PT descamba num apoio a Bolsonaro. Porque do anti-petismo a Bolsonaro não vai um passo. Não vai mesmo. Pelo meio, o centro-direita esvaziou-se, ficando o seu eleitorado convidado a escolher entre a esquerda reunida num PT para todos os gostos (do centro-esquerda à extrema-esquerda), mal ou bem, como bastião da Democracia, e a extrema-direita de Jair Bolsonaro, um movimento que visa a restauração da ditadura militar. A partir do momento em que o centro-direita não foi capaz de contrariar a onda fascizante de Bolsonaro, mantendo o país dentro de uma esquadria democrática, resta-lhe poucas opções: ou é conivente com o fascismo ou abandona o seu perfil político e segura a democracia que resta no país. Pelo meio disto caiu a opção mais segura, Ciro Gomes, o candidato do centro-esquerda, o qual seria a escolha mais óbvia para aqueles que considerando que o tempo do PT acabou, ainda acreditavam em soluções sociais justas e na Democracia. Por isso, não, isto não era entre o PT ou Bolsonaro. Só se tornou tal graças à falência do centro-direita, do centro-esquerda e à histeria gerada em torno de Bolsonaro. Caso se venha a confirmar a eleição do candidato fascista o Brasil vai acordar já tarde. Porque a história ensina que as ditaduras só aprofundam os problemas do país.

O BRASIL EM BUSCA DO TAL SALVADOR

Outubro 11, 2018

A ASCENSÃO DE JAIR BOLSONARO, um político sem programa de governo, e que por golpe mediático e onda popular aparece como Salvador da Pátria, não é novidade no Brasil, um país caraterizado por fortes assimetrias sociais e económicas, com uma forte densidade populacional de baixíssima renda e escolarização mínima ou má escolarização. Este cenário é agudizado pela forte alienação religiosa e pelo altíssimo índice de criminalidade, gerando um caldo sociológico propício ao surgimento de messias políticos, alguém que pareça reunir os predicados capazes de restaurar a ordem e os bons costumes, num país de fortes tensões entre conservadorismo extremo e significativa presença da comunidade LGBT, diversidade étnica, cultural e religiosa. O franco crescimento das igrejas neopentecostais, capazes de galvanizar milhares de fiéis e com propensões para alianças políticas -- tendo gerado uma bancada evangélica no Senado brasileiro --, impulsiona a dimensão messiânica da população brasileira. Esta onda popular já havia elegido Fernando Collor de Mello (na imagem), sob os mesmos epítetos: mito, herói, salvador. Os resultados da governação de Collor de Mello foram desastrosos. Com efeito, ao contrário de Bolsonaro, Collor vinha provido de um programa de governo liberal, fortemente marcado pelas privatizações e pela abertura às importações -- o conhecido programa Collor --, que conduziu o país a uma violenta recessão económica.

A mesma propensão salvacionista levou à eleição de Luís Inácio Lula da Silva, um herói advindo do povo, da classe operária, um herói ao estilo da literatura de Jorge Amado, coincidente com o grosso populacional brasileiro. O seu programa de governo produziu mudanças profundas na sociedade brasileira, com inúmeras medidas sociais, educacionais e culturais. O descontrolo sobre a gestão do erário público e a incapacidade de controlar a corrupção, aliada a uma pressão dos setores conservadores sobre os media, durante o período de Dilma Rousseff, foram responsáveis por um golpe político aclamado pelas elites, saturadas do peso de tais medidas sociais sobre a sua renda.

Contrariando o esperado pelas elites políticas conservadoras brasileiras, Jair Bolsonaro, um político sem trabalho realizado, pró-ditadura militar, homofóbico, misógino e racista, sem qualquer projeto político ou programa de governo para o país, foi capaz -- precisamente fazendo uso desse vazio de ideias para disseminar apenas um sentimento anti-petista e de radicalização discursiva -- de colar-se ao papel do messias. Contudo, ao contrário de Collor de Melo, como visto, Bolsonaro é um candidato sem ideia de governo, alguém que se esquiva dos debates políticos por não ter nada a apresentar como programa para economia, saúde, educação, finanças ou relações internacionais. Bolsonaro personifica o messias do pós-I Guerra Mundial na Europa, capaz de se alimentar e alimentar a histeria pública, sem propor outra coisa que não a demonização de uma franja social e política. O herói das elites e das massas evangélicas fanáticas é o messias do ódio, o Salvador pelo armamento popular, o candidato das fake news, sobre o qual não se possui qualquer informação sobre o que fará como presidente, precisamente porque o cenário não foi, com efeito, equacionado. O Brasil procura a Salvação no penhasco.

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Anatomia da Palavra é um blogue de João Ferreira Dias, escrito segundo o Acordo Ortográfico, de publicação avulsa e temática livre. | No ar desde 2013, inicialmente sob o título A Morada dos Dias Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

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Informação

João Ferreira Dias é Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, no Grupo Instituições, Governação e Relações Internacionais. Interessado por Direitos Fundamentais, Teoria Política e do Estado, Direito Constitucional, e Antropologia Religiosa.