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Post{o} de Vigia

11.12.23

Vivemos um tempo em que a ciência é sobretudo um ato político. Qualquer olhar situado, contextualizado, mas não menos crítico, sobre factos e personagens históricas é desconsiderado, em favor de uma polarização entre os elogios da poeira do nacionalismo e a crítica feroz de quem quer passar sobre a história a vassoura moral. Se a primeira peca por desconsiderar que a história não é linear, e que vozes discordantes da normalidade da época eram ouvidas, que a crítica pode bem ser construtiva e que as tradições e a memória história são uma invenção (ou para usar um bom termo de Triaud, “o passado [é] composto”), a segunda postura é marcada por um quadro teórico em ascendência nas universidades do mundo ocidental, que detém uma vocação ideológica de “teoria final”. Trata-se de olhares antagónicos e pouco prolíferos, considerando que a história é um tecido intricado, onde cada fio representa uma perspetiva única e muitas vezes contraditória, implicando um reconhecimento da diversidade de perspetivas históricas a fim de produzir-se uma compreensão mais completa e justa do passado.

Isto a propósito da astrónoma Mia de los Reyes, do Amherst College no Massachusetts, que pretende entrar com um processo junto da União Astronómica Internacional para retirar o nome de Fernão de Magalhães das galáxias-satélites anãs na Via Láctea, conhecidas por “Nuvens de Magalhães”. A sua justificação é que se trata de uma homenagem a um "colonialista, traficante de escravos e assassino".

Observemos o mérito da proposta. Em primeiro lugar, as homenagens desta natureza refletem um consenso político e social de um tempo. Tendo presente que, como escreveu Hartley, “o passado é um país estrangeiro, lá faziam-se as coisas de forma diferente”, é aceitável que à luz dos nossos valores atuais se revejam determinadas homenagens, seja por via de estátuas, seja por Via Látea. Nesse sentido, havendo um consenso, é possível e não traz nada de mal ao mundo, que as ditas nuvens recebam outro apelido, ou uma designação neutra, conquanto se tenha presente que tal escolha não pode refletir uma visão política a contrario, isto é, de ajuste de contas com a história, sob pena de receber descrédito em tempo futuro.

Posto isto, convém ter presente as afirmações de Mia de los Reyes, as quais denotam de forma evidente um olhar politizado sobre a história, enquanto seleção de propostas teóricas de um quadro mais alargado da Teoria Crítica, alicerçada sobre uma visão persecutória e reformuladora da história a partir de uma leitura linear e maniqueísta dos acontecimentos, de inspiração pós-marxista, numa dialética pós-material entre “opressores e oprimidos”. Isto porque considerar Fernão de Magalhães “colonialista” implica um olhar – usando um termo de Danto – de “alinhamento retrospetivo”, em que se compõe o passado a partir do conhecimento do presente, desconsiderando, ainda, que o sufixo “ista” se refere a uma posição ideológica que Fernão de Magalhães teria em favor da posse de territórios através de colónias. Ora, à época, o empreendimento marítimo era de expansão de rotas comerciais. Em segundo lugar, a adjetivação como “traficante de escravos” é uma acusação com pouca sustentação, já que existem poucas ou nenhumas evidências do envolvimento de Fernão de Magalhães no tráfico de pessoas para efeitos de escravatura. Terceiro, a designação como “assassino” presumivelmente refere-se aos conflitos vividos nas Filipas (Batalha de Mactan) que resultaram na sua morte. A avaliação desses conflitos é pantanosa, mas podemos tomar por boa que existe uma espécie de culpa moral porque Fernão de Magalhães conduzia expedições a territórios habitados e que os confrontos com habitantes locais são produto de uma investida exógena, portanto, ilegítima.

Assim, como avaliação da proposta, é possível reconhecer mérito, tendo por base o reconhecimento de que vivemos um contexto de necessária avaliação crítica da história, donde não parece despicienda uma renomeação das nuvens com um nome mais consensual como por exemplo Nuvens Mandela, ou um nome neutro, como Nuvens Púrpura.

A proposta de renomeação, quando despojada de uma abordagem ideológica, levanta a questão fundamental de saber como devemos lidar com as homenagens a figuras do passado à luz dos valores contemporâneos. Todavia, a forma como a astrónoma fundamenta o seu pedido reflete um olhar sobre a história de natureza persecutória, revisionista e ideológica, que desmerece a proposta e reforça a polarização social. Este modus operandi só é percebido como meritório dentro – permitam-me a metáfora de contexto – de uma nuvem que paira sobre segmentos dos campus universitários para quem os novos “bens de luxo” são as medidas que visam purificar a sociedade, numa nova forma de ajustes de contas com a história e reprogramação social que refletem um novo “despertar religioso”. É uma pena, porque obrigam a sociedade a jogar “fora o bebé com a água do banho”, em nada contribuindo, portanto, para uma saudável reflexão, discussão e compreensão matizada do passado sem perder de vista um quadro ético humanista.

21.03.23

A obra de Enid Blyton marcou a primeira metade do século XX, em particular com as séries "Os Cinco" e "O Clube dos Sete", obras de literatura infantil de aventuras que inspiraram outras gerações seguintes, como "O clube das chaves" ou "Uma Aventura". A obra de Blyton não passou ao lado de críticas, inclusive na época, pelas personagens estereotipadas, que reforçavam estereótipos de género e de classe social, pelo excesso de clichés sociais, bem como por um conservadorismo moral, político e educacional, que reforçava uma ordem tradicionalista e patriarcal, manifestas na defesa da obediência e da disciplina. Apesar disso, a obra de Blyton sobreviveu até hoje, com múltiplas edições em todo o mundo.

No entanto, sabe-se que em Inglaterra, no Condado de Devon, inúmeras bibliotecas estão a esconder a obra da autora, em especial as versões mais antigas, sendo necessário solicitar os mesmos, acompanhados de um aviso de linguagem potencialmente ofensiva. Somos, então, convocados para um debate em curso, sobre a pertinência de se proibir ou censurar livros e obras literárias. O argumento central, a favor dessa política de cancelamento literário, baseia-se na perpetuação de estereótipos de género, racismo, xenofobia, gordofobia e preconceitos de diversa ordem, que seriam legitimados pela literatura e que teriam um impacto negativo nas crianças. O argumento não é despiciente, mas, no meu entendimento, padece de dois vícios de substância: primeiro, integra uma luta cultural e espiritual de purificação da sociedade, que visa transformar a mesma por decreto e por censura, acreditando que a mudança nas mentalidades, em direção a uma sociedade mais inclusiva, se faz por campanhas de proibição, censura e cancelamento, sem considerar que essa atitude alimenta uma reação contrária; em segundo lugar, tem o vício de – ao impedir o acesso à informação e à obra – de agir sobre a sociedade de um modo paternalista, infantilizando os demais concidadãos, tomando-os por incapazes de ter um olhar crítico sobre a realidade e a literatura, e, no plano educativo, por fomentar uma geração de crianças criadas numa redoma moral, como “flores de estufa” ou snow flake, julgando que as impedir de ler palavras como “gordo”,  “negro”, ou outras, as educa para a inclusão, quando na verdade, face à realidade social muito mais complexa com que têm de lidar, porque são confrontados com um mundo onde estereótipos e preconceitos prevalecem, se encontram inaptos para a sobrevivência, sendo encaminhados para a angústia e a incapacidade de lidar com desafios.

É curioso, portanto, que o ímpeto moralizador social não raras vezes se faça acompanhar por um modelo educacional permissivo e helicóptero, em que os pais/encarregados de educação deixam de assumir um papel ativo na educação das crianças, estabelecendo regras e preparando-as para os desafios de uma sociedade onde os valores são plurais e conflituantes, onde não basta pedir para ter, para se empenharem numa mudança social por decreto e por mecanismos censórios.

Nesse sentido, parece-me mais útil continuar a permitir o acesso à obra de Enid Blyton e outras, sem censura, acompanhando a leitura de uma contextualização (sobre um período com outras normas e valores) e de uma discussão sobre o carácter problemático de determinados elementos, sem deixar de apreciar o valor literário. Todavia, este parece ser um caminho mais complexo, que exige maior empenho educativo. É muito mais fácil infantilizar os sujeitos e censurar a literatura.

Cólofon

Post{o} de Vigia é um blogue de João Ferreira Dias, escrito segundo o Acordo Ortográfico, de publicação avulsa e temática livre. | No ar desde 2013, inicialmente sob o título A Morada dos Dias Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.