Portugal, sem dúvida, necessita realizar o debate sobre o racismo enraizado, a memória colonial e tantas outras feridas sociais que há muito se fingem inexistentes. Todavia, este é o momento menos propício para submergir na política das identidades. O foco deve estar na forma como a direita radical capitaliza o endurecimento securitário do Estado, insufla discursos de ódio e semeia a fissura no tecido social. Há que questionar como essa corrente, mesmo ao proferir declarações vis e indecorosas, consegue ainda assim granjear apoio social. O que se revela, afinal, não é apenas uma simpatia pelo ultraje, mas uma inquietante inclinação coletiva para aceitar, e até desejar, um Estado de feição autoritária.
O autor das palavras é assessor político do Chega e o seu post, conjugado com as declarações de Ventura de que é preciso condecorar o agente que matou Odair Moniz, sem apuramento dos factos, como recompensa simbólica pelo ato, permite compreender que, de facto, estamos perante uma guerra cultural em torno da ação policial do Estado. Isto mais não é do que uma importação da narrativa bolsonarista de “bandido bom, é bandido morto”, mesmo que em causa não esteja um bandido, mas apenas alguém que corresponde ao estereótipo. Portanto, há uma guerra cultural sobre a identidade biocultural e sobre a ideia de Estado policial, em que as forças de autoridade não devem ser escrutinadas. Qual o outro lado da rua? A ideia de que em cada polícia há um agressor. A verdade é que o corporativismo tem optado pela autopreservação, o que equivale a perpetuar problemas endémicos.
Por outro lado, a referência ao BE é parte dessa guerra cultural, ao centrar-se na ideia de que a Esquerda está de conluio com o globalismo e ao defender as minorias é, na verdade, cúmplice dos seus crimes, sendo o BE a "casa" dos bandidos. Uma vez mais, a fórmula bolsonarista em ação.
A trajetória dos movimentos LGBT(QIA+) explicita uma luta pelo reconhecimento e dignidade no seio de uma hegemonia cultural normativada a partir de padrões religiosos de matriz eminentemente cristã, que considera a homossexualidade um pecado, donde surgiu uma visão clínica que considerou tal orientação sexual uma patologia, e uma orientação jurídica que criminalizou a prática. Mas ainda no século XIX, na década de 1860, o advogado alemão Karl Heinrich Ulrichs, considerado um dos primeiros defensores dos direitos dos homossexuais, argumentava que a homossexualidade era inata e deveria ser descriminalizada. Mais tarde, o sexólogo alemão Magnus Hirschfeld fundou o Comitê Científico Humanitário em 1897, que se dedicava a promover a reforma legal e a aceitação social da homossexualidade. A partir dos anos de 1950 e 1960, dá-se uma aceleração das lutas pelo reconhecimento, com o surgimento de grupos organizados, e com a Revolução Sexual a trazer o desafio das normas sociais sobre sexualidade e género. No entanto, o marco decisivo para os movimentos LGBT modernos foi a Rebelião de Stonewall, que ocorreu em junho de 1969 em Nova York. Após uma batida policial no bar Stonewall Inn, frequentado pela comunidade LGBT, houve uma série de protestos e confrontos que duraram vários dias. Este evento é amplamente considerado o ponto de partida do movimento de libertação gay. Após Stonewall, surgiram numerosas organizações ativistas, como a Gay Liberation Front (GLF) e a Gay Activists Alliance (GAA), que defendiam direitos civis, sociais e políticos para pessoas LGBT.
As décadas de 1980 e 1990 foram importantes, com a crise da SIDA a impactar profundamente, em especial entre homens gays. Nos anos 1990, houve avanços significativos em termos de reconhecimento e direitos. Vários países começaram a descriminalizar a homossexualidade e a implementar leis de proteção contra a discriminação.
O século vigente traria novidades, através do reconhecimento legal do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em 2001, os Países Baixos foram o primeiro país a legalizar o casamento igualitário, seguido por muitos outros ao redor do mundo. A esta luta juntaram-se novas formas contrahegemónicas de ver a sexualidade e o género, com a emergência dos direitos “trans” e de identidade de género. No entanto, o avanço de tais garantias contribuiu [1] para reacender as «guerras culturais», acelerando as lutas identitárias e a emergência da direita radical populista e nativista. No quadro das guerras culturais pela hegemonia cultural e pela identidade, questões sobre a moralidade sexual são centrais, mobilizando o progressismo e o ultraconservadorismo, de que os Estados Unidos e o Brasil são casos paradigmáticos, graças ao envolvimento militante dos importantes setores evangélicos. Como mostra a literatura sobre as guerras culturais, a moral sexual tem um efeito polarizador na sociedade, uma vez que mexe com crenças profundas dos cidadãos, que passam a ver a disputa não como um plano político, mas uma verdadeira batalha espiritual pela alma do país.
Em resposta ao movimento de “orgulho gay”, que procura visibilizar e alertar para a dignidade e garantia de direitos destas comunidades – que em várias cidades do Ocidente se tornaram verdadeiros festivais públicos –, vem surgindo uma narrativa de “orgulho hétero”, como reação hegemónica em torno da “defesa da família tradicional”, a qual é percebida como estando sob ataque. Esta perceção não acolhe respaldo na realidade, já que as famílias heterossexuais não são discriminadas, não são minoritárias, nem têm direitos vedados.
Em segundo lugar, decorre uma crítica de que as paradas gays são excessivas. Embora se perceba que do ponto de vista estético possam chocar, mesmo aquelas que são favoráveis aos direitos destas comunidades, a verdade é que as paradas gays pretendem visibilizar através da performance. Mais acresce, que em nada distam de inúmeros carnavais, nomeadamente o muito português Carnaval de Torres Vedras e que homens se vestem de mulheres (“matrafonas”). Portanto, o ponto não é o excesso estético, mas a aceitação da homossexualidade em termos não discordantes com o que Butler chama de “performances de género” [2], em que há um conjunto de modos de estar socialmente aceites.
Assim, mesmo nos casos em que há uma aceitação da homossexualidade (o que já é uma conquista social), decorre uma expectativa de comportamentos concordantes com a heteronormatividade, de que a imaginação de que um membro do casal faz o “papel de homem” e outro “de mulher” é exemplo acabado.
Em terceiro lugar, verifica-se uma indisponibilidade social para manifestações sociais coletivas de visibilidade LGBT(QIA+), como bandeiras arco-íris em logos, fachadas de monumentos, passadeiras, entre outros espaços públicos, durante o mês do Orgulho Gay (presente mês de junho), considerando um excesso de atenção a esta comunidade.
Portanto, a “questão do orgulho” mobiliza vários aspetos sociais, políticos e morais, enfatizando uma tensão e polarização que produz uma guerra cultural, quando está em causa salvaguarda da dignidade do direito a ser e existir socialmente. Por outro lado, no campo mainstream em que já se verifica uma aceitação, encontramos uma rejeição de manifestações públicas, em especial do Estado, de visibilização da comunidade LGBT(QIA+), considerando que se trata de um enfoque excessivo num grupo particular, em detrimento da maioria (princípio da democracia maioritária), com uma resposta de promoção de um “orgulho hétero”. Ora, como certa vez vi numa imagem nas redes sociais, “não há mês do orgulho hétero, da mesma forma que não há ‘sopa dos pobres’ para ricos”, porque, de facto, não é preciso. Numa situação normal, de crescendo de pluralidade democrática, o mês do orgulho gay também seria desnecessário, sucede que as sociedades não funcionam assim, e as guerras culturais contra a diversidade sexual estão aí para o provar.
[1] esta questão não é autónoma do importante contributo das crises económicas e instabilidades socioeconómicas a partir de 2008.
[2] embora não adote na totalidade os postulados de Butler, que partem de uma leitura excessivamente desconstrutivista que não leva em conta a noção de «universais culturais».
A ideia de que a família tradicional está sob ataque é um dos elementos centrais dos discursos políticos da direita radical, participando de forma estruturante nas “guerras culturais” em vigência. Trata-se de uma ideia que, não tendo respaldo na realidade, aposta numa dimensão de “pânico moral”, ou seja, visa desestabilizar uma segurança imaginada entre setores conservadores e, sobretudo, ultraconservadores. Esses setores observam o avanço dos direitos das minorias sexuais como uma ameaça aos seus valores, como se ganhos de direitos representassem um perigo concreto para o seu mundo.
Nesse quadro de entendimento – que vimos, por exemplo, a propósito da família de Guimarães que não pretendia que os filhos frequentassem a disciplina de Cidadania –, há uma crença de matriz religiosa de que o “marxismo cultural”, enquanto encarnação do mal, tomou conta dos espaços públicos, nomeadamente do Ensino. Segundo essa crença, o objetivo seria desestruturar a sociedade como a conhecemos, sendo o seu elemento mais nuclear a família.
Desse modo, a simples existência pública de homossexuais, transsexuais ou pessoas não-binárias corresponde a uma ameaça concreta, já que, para esses grupos, há o perigo de “desencaminhar a juventude”. Tais identidades não são consideradas apriorísticas, mas antes resultado de um programa político de esquerda marxista cultural para acabar com a sociedade ocidental.
Portanto, a família tradicional não está sob ataque, até porque ela sempre foi, em grande medida, uma imaginação política e religiosa: o casal heterossexual, casado para a vida, com filhos, num lar devoto. Além do mais, verifica-se que a heterossexualidade permanece dominante, como padrão biológico e social.
Assim, o que encontramos é um pânico moral que é alimentado por setores políticos radicais para efeitos eleitorais. Ao imaginar que a família dita tradicional está ameaçada, permite-se articular um conjunto de valores nacionalistas em torno de identidades sociais fechadas e assentes no monismo cultural e sexual.
De modo especial entre as elites políticas e intelectuais portuguesas, há um longo historial de imaginar um excecionalismo português, como parte daquilo que, muito bem, Eduardo Lourenço chamou de “hiperidentidade”. O mais evidente desses excecionalismos foi e, em boa medida, ainda é, o excecionalismo colonial, a arte única da natureza portuguesa – a que Adriano Moreira deu o nome de “modo português de estar no mundo” – de conviver com outros povos sem que essa relação tivesse a marca do poder, do racismo ou do darwinismo social. É uma memória social falsa, um artifício político de profundo poder social.
Um outro excecionalismo, muito recente, era o do país sem populismo. Essa ideia foi uma criação académica, fruto de uma metodologia excessivamente quantitativa da Ciência Política, que no vazio da abordagem qualitativa não foi capaz de olhar para a realidade, nem a longo-termo, nem nas suas dinâmicas sociais. Um país messiânico, de baixa escolaridade e pobre, não só seria sempre propenso ao populismo, como o teria em doses de longa duração. Do populismo militar e do “operariado” de Otelo ao populismo de Portas, marcado pela penetração do argumentário lepenista sobre “subsidiodependência” e perigoso da imigração, passando pelo populismo bloquista na era troika, Portugal nunca foi imune ao fenómeno, como bem mostra Zúquete, na sua obra Populismo: lá fora e cá dentro, obra que salva a face de forma mais evidente e pública da disciplina de Ciência Política.
Ora, na condição de fenómeno ocidental, cujos processos de rápida transnacionalização são bem estudados, o populismo de direita radical não só chegou a Portugal como se instalou de vez no coração da sociedade e da política nacional, sendo capaz de transpor fronteiras ideológicas e sociais, na sua condição mais evidente de produção da ideia de representação da voz do povo. O Chega não difere, portanto, de qualquer partido da direita radical populista, na sua natureza de antissistémico, de populismo “para cima” e “para baixo”, i.e., de combate às “elites corruptas” e aos cidadãos que não são “do bem”, ou nas suas tendências iliberais de combate à liberdade de imprensa e ao escrutínio público, ou à diversidade e ao multiculturalismo.
Com efeito, a agenda iliberal no plano “dos costumes” tem sido fomentada Rita Matias, jovem deputada do Chega, de grande influência nas redes sociais. Próxima de Ana Campagnolo, jovem deputada bolsonarista, Rita Matias importa a “pauta” bolsonarista anti-esquerda, ou seja, em torno da defesa da “família tradicional” e do combate à dita “ideologia de género”. De modo evidente e fático, estamos no plano das chamadas “guerras culturais”, ou seja, uma disputa de natureza imaterial (ou pós-material) em torno de temas de particular dimensão moral, como o direito ao aborto, o casamento e adoção por parte de casais homossexuais, a identidade de género, o lugar da religião na sociedade, o racismo como mais ou menos estrutural, entre outros, que por terem essa natureza moral produzem polarização e incompatibilidade. Assim, as “guerras culturais” são uma batalha pela alma do país, para usar de modo livre o título da obra de Andrew Hartman, A war for the soul of America: A history of the culture wars.
Num momento em que se verifica uma viragem à direita em todo o Ocidente, com uma concentração da esquerda em matérias ditas “identitárias”, cujo abandono ou secundarização das questões materiais de pobreza e exclusão em favor de lutas pós-materiais que procuram uma purificação social, facto que muito contribuiu para o crescimento da direita radical e da sua expurga do multiculturalismo, é inevitável que o fenómeno das “guerras culturais” extravase a realidade americana. Se há décadas que o tema tem vindo a crescer e foi essencial na eleição de Donald Trump, agregando ressentidos da pátria com evangélicos, o fenómeno teve reflexo na sociedade brasileira, em termos absolutamente idênticos. Em Portugal, Rita Matias soube canalizar o assunto para ganhar o seu espaço no meio mediático e entre uma população jovem que vem se manifestando mais conservadora e que se confronta com a radicalização esquerdista nas escolas e universidades, num fenómeno também ele global. As questões identitárias de direita, com a agenda ultraconservadora, foram também objeto de apropriação pelo partido ADN e apareceram na AD pela boca de Paulo Núncio.
Será, portanto, inevitável que o crescimento musculoso do Chega, terceira força política no parlamento, produza o efeito de fazer das “guerras culturais” tema senão central, pelo menos de enorme importância. Dado que o ultraconservadorismo religioso em Portugal não é equivalente ao norte-americano ou brasileiro, em que os movimentos evangélicos constituem grandes grupos de pressão política, poderemos não experimentar as fissuras sociais que ocorreram nesses países. Isso não significa, contudo, que não venhamos a ter tensões sociais e políticas em torno destas questões, com uma possível compressão de direitos até ao seu núcleo essencial, o que configurará um retrocesso em conquistas de direitos. Caberá à AD o papel de garantir a integridade das conquistas civilizacionais e humanistas derivadas da Constituição democrática, enquanto a Esquerda deverá continuar a fazer destas questões bandeira, desta feita de forma menos divisionista e purista, se quiser que haja uma ampla plataforma social em torno das questões. Por fim, uma nota importante para o papel que os meios de comunicação social poderão ter neste processo, haja visto que as guerras culturais tendem a mobilizar paixões e, assim, potenciar o sensacionalismo mediático, o que produzirá efeitos no plano da solidariedade e da convivência social.
Mais importante do que a vitória de Geert Wilders e do seu partido nas eleições nos Países Baixos, é o significado global que está associado a estes resultados, quanto mais não seja porque formar governo será uma tarefa extremamente difícil. Desse modo, o mais significativo é o sintoma que está associado à eleição e ao voto no Partij voor de Vrijheid, conhecido pela sigla PVV. Trata-se de um partido-padrão da nova direita radical populista, congregando uma agenda económica liberal ou ultraliberal com valores morais e sociais conservadores. O seu eleitorado é composto principalmente por pessoas brancas, de classe média, que vivem em áreas rurais ou suburbanas da Holanda, sendo ainda popular entre os jovens e os desempregados. Uma vez mais, semelhante aos demais partidos desta natureza. Trata-se de um país de pobreza relativa e baixa taxa de insucesso escolar, sendo ambos fenómenos maiores entre as populações imigrantes. Nesse sentido, o sucesso de Wilders centra-se na agenda anti-islão, em linha com uma tradição europeia de «pânico moral» associada a imigrantes e refugiados que tem levado ao fabrico de notícias falsas sobre violência e crime, com o intuito de levar a um voto nestes partidos radicais. Todavia, esta análise enquanto doutrina corrente não faz mais do que identificar sintomas, estando presente numa abordagem política de esquerda cada vez menos eficaz. Isto porque a esquerda europeia, cada vez mais pós-material, concentrada em batalhas culturais e identitárias, perdeu terreno nas preocupações materiais, experimentando um enorme fosso entre ideias e teorias e a preocupação corrente das populações. A partir dessas pautas, concentra-se na mais-valia do multiculturalismo e num dever de acolhimento sem contrapartidas por parte dos Estados, adotando uma posição moral e moralizante sobre o fenómeno migratório.
Ora, a necessidade de imigração para conter o inverno demográfico (que precisa igualmente de ser combatido desde logo junto dos nacionais, com apoios à natalidade), um dever de acolhimento e a mais-valia do multiculturalismo não impedem que vejamos os problemas inerentes ao modelo “portas abertas” que se adotou, sem um necessário controlo de fluxos migratórios, que permita impedir a exclusão social e a criação de bolhas sociais de tal forma fechadas sob pertenças étnicas e religiosas que formem microssociedades adversas à sociedade geral. Ou seja, o multiculturalismo não pode ser uma via de um sentido único, baseada numa lógica de “culpa branca”, mas deve ter uma dimensão programática de inclusão, de gestão dos fluxos, e de um diálogo como dever-ser, e isso implica acolher e ter vontade de integração, implica duas vias. Caso contrário a Europa acabará governada por partidos de direita radical, que a pretexto do combate à imigração e em nome do “pânico moral”, imporão uma agenda desprotetora na economia e castradora das identidades pessoais.
A ciência política tem mostrado como o pânico moral é um dos elementos mais importantes na construção de um campo político radical de direita no Ocidente. Partindo de estereótipos, preconceitos, notícias falsas e teorias da conspiração, tais movimentos têm observado enorme implementação no Ocidente, tendo na imigração o seu leitmotiv. Um exemplo paradigmático é o crescimento da AfD na Alemanha na sequência da chamada "crise dos refugiados", que correspondeu a uma instrumentalização de notícias falsas sobre violações e crimes em massa (que não ocorreram) para criar um pânico moral na sociedade alemã. Na era da pós-verdade não é necessário que existam factos, apenas basta que as crenças mais íntimas sobre o "outro" tenham respaldo em qualquer site, blog ou post em rede social.
Em Portugal as "guerras culturais" e o pânico moral têm observado escassa penetração, mas é possível encontrar reflexos dessa questão, desde fenómenos de negacionismo à importação da "grande substituição". Este texto no blog Blasfémias é sintomático desse pânico moral. A forma simplificada e assente numa lógica dicotómica em torno da imigração é exemplar dessa importação de um discurso que levou ao Brexit e à eleição de Trump. Convenhamos que ao contrário do populismo que se baseia em interpretações simples para fenómenos complexos, a verdade é que a imigração para o Ocidente é um tema com várias esquinas, que impõe uma análise equilibrada e ponderada. Embora não aprecie o discurso nativista da direita identitária(1), que propaga a ideia de que a globalização colocou as identidades nacionais sob ameaça, não me parece nenhuma concessão ao globalismo reconhecer que uma imigração at large impõe desafios às sociedades de acolhimento, em primeiro lugar no plano cultural, porque o multiculturalismo tende a ser um fenómeno de uniformização, e em segundo lugar um desafio económico, já que grandes contingentes populacionais não são fáceis de integrar. Assim, enquanto é importante reconhecer os benefícios trazidos pela diversidade cultural (como processo de desconstrução de estereótipos, racismo e preconceitos) e o potencial de contribuição dos imigrantes para a sociedade, também devemos considerar cuidadosamente os desafios que podem surgir a curto e longo prazo. Sem uma abordagem adequada, os desafios de integração podem levar ao surgimento de guetos, exclusão social e segregação, o que pode gerar tensões e conflitos. Este fenómeno é evidente em cidades como Malmo, na Suécia, e em vários pontos de Paris, por exemplo.
De igual modo, o controlo fronteiriço parece-me um caminho necessário, através da verificação de antecedentes criminais e de uma avaliação cuidadosa dos imigrantes, a fim de garantir a segurança de todos os cidadãos. A cooperação internacional também desempenha um papel importante na troca de informações e no combate a atividades criminosas transfronteiriças.
Paralelamente, a imigração não deve ser pensada como um processo de solução única para as questões demográficas e da segurança social. Essa medida revela-se um "penso rápido" que acabará por não resolver o problema de fundo, uma vez que os imigrantes que hoje contribuem para a segurança social e para o saldo demográfico, dentro de pouco tempo serão, igualmente, dependentes do mesmo fundo social. É essencial criar um tecido educacional capaz de responder às demandas do mercado, ao mesmo tempo que se apoie os jovens a terem filhos.
Em suma, se o texto no Blasfémias parte de um contexto de pânico moral, contendo estereótipos e extrapolações, a verdade é que a imigração é um desafio gigante nas sociedades ocidentais, e que os modelos adotados por governos neoliberais (baseados no mercado pelo mercado) ou governos de esquerda (assentes numa lógica de portas abertas e multiculturalismo exclusivamente benemérito) padecem de considerar o processo a longo-termo. Para salvar a segurança social no imediato estamos dispostos a hipotecar a identidade cultural abrangente (porque a sociedade não é unidimensional, como imagina a direita radical)? Estamos a considerar que os contribuintes para o fundo social serão no futuro beneficiários? A política de portas abertas sem controlo não será um problema para segurança num futuro imediato?
Todas as respostas implicam uma avaliação criteriosa e prudente, evitando discursos de pânico moral e de euforia multiculturalista.
Lula ganhou, mas não venceu. Os resultados deixam o país na mesma fissura e sem particulares hipóteses de reconciliação. É um país sem vasos comunicantes. Se o Senado é de forte expressão bolsonarista, com as presentes eleições vimos São Paulo eleger e Rio de Janeiro reeleger governadores de igual tendência, com Haddad, potencial sucessor de Lula a perder em território paulista e ficando sem capital político para o futuro.
Nas ruas a narrativa do presidente-bandido prevalece entre o eleitorado branco, evangélico e de classe média. Os casos que indiciam corrupção, formação de milícia e violação de direitos humanos na era Bolsonaro não produzem efeito de afastamento de um eleitorado arregimentado. Uma vez mais, o Brasil é uma cópia adaptada dos EUA. Mesmo Lula tendo o apoio dos evangélicos moderados e de boa parte da elite económica e empresarial, facto que inviabiliza qualquer fantasia de venezuelização do país (que nunca ocorreu), a verdade é que a batalha cultural contra o dito “marxismo cultural” em favor de uma hipermoral evangélica e dos direitos de classe alienam o eleitorado bolsonarista, o qual sobrevive bem sem Bolsonaro, já que é um produto histórico e social antigo que sempre esteve vivo no Brasil.
Não obstante os resultados eleitorais, a situação política e social está muito longe de estar sanada. Nas ruas teremos um arregimentar das milícias populares pró-Bolsonaro e algo similar ao ataque ao Capitólio é bastante viável de acontecer. O incitamento à intervenção dos militares ganhará força e a recusa em aceitar os resultados eleitorais, com fabricação de suspeitas de fraude, fará também o seu caminho. A democracia brasileira não está minimamente a salvo e até 1 de Janeiro de 2023 muita água (e esperemos que nenhum sangue) irá correr no Brasil.
Assim, partindo do princípio de que a situação social não entrará numa escalada de guerra civil, já que o ódio é o grande leitmotiv eleitoral no país, e que Lula da Silva tomará posse dentro do (mínimo) regular funcionamento das instituições, a democracia brasileira entrará no seu mais determinante capítulo desde o fim da ditadura. Lula precisará de (i) estabelecer acordos que lhe permitam governar, (ii) ser absolutamente impoluto, (iii) realizar uma purga à corrupção do partido, (iv) encontrar mecanismos de combate à pobreza e à violência, (v) repor os direitos das minorias entretanto suspensos, sem fazer dessa a sua pauta cultural, (vi) corrigir as assimetrias sociais e estaduais da melhor forma possível, visando um processo continuado de equilíbrio e aproximação do país, (vii) preparar a sucessão incentivando os demais partidos a encontrar quadros democráticos e qualificados que garantam uma saudável alternância política sem um enfoque populista e de guerra cultural. O desafio é hercúleo, porque o que está em causa, a partir de agora, é salvar a democracia dos seus mais terríveis fantasmas.
Ao entregar o discurso racial e etno-nacionalista a Zemmour, concentrando-se em sentimentos de revolta e em narrativas populistas mais transversais, Le Pen deixou evidente que a forma como se move na política é bem diferente do seu pai, sendo muito mais próxima do modelo da nova direita trumpista e brexista, portanto de ideologia de ocasião. E isto significa, queira-se ou não, uma capacidade política de entrar no eleitorado de esquerda radical, bem patente na intenção de voto de parte do eleitorado de Mélenchon.
A literatura bem vem evidenciando que a adesão a discursos antisistémicos é resultado de uma ansiedade masculina branca de classe média-baixa e baixa (working-class) e suas famílias, para quem interessa mais a comida na mesa do que as lutas pós-materiais identitárias da nova esquerda burguesa. Quem não percebe isto vive numa redoma, não compreendendo que a racialização do outro é um fenómeno de longo-termo, inscrito nas ansiedades laborais dos sujeitos e não apenas no racismo biológico herdado do nefasto pensamento colonial. É o fenómeno Brexit no seu esplendor.
Por cá, ainda antes do Chega, o CDS de Manuel Monteiro percebeu a dinâmica da sensação de abandono nas áreas rurais.
Ora, entre o abandono rural e a ansiedade urbana face ao "outro", o eleitorado não-militante tornou-se ávido de vozes de protesto. É por isso que a explicação racista como fundamento único para a adesão à direita radical é insuficiente, porque o "eles" e "nós" nem sempre é relativo à imigração, aos refugiados, às minorias ou ao Islão, é muitas vezes sobre cidade/campo, povo/elite, divisão clássica populista e fascista que procura mobilizar a precariedade para tomar o poder.
Um dos fenómenos sociais mais interessantes da ascensão de Bolsonaro, encontra-se na conquista quase absoluta do eleitorado emigrado para Portugal. Foram 89% dos votos. Em primeiro lugar, é preciso levar em consideração que esse eleitorado não compartilha um mesmo perfil sócio-económico, mas partilha, pelo menos, um aspeto central desencadeador do fenómeno migratório: a insegurança. Na sua esmagadora maioria, os brasileiros em Portugal realizaram a travessia do atlântico escapando ao clima de violência brutal que assola o país. Quando se leva em consideração as motivações eleitorais sabemos, até por experiência da geografia política europeia, que o fator segurança é determinante na forma como se constrói um eleitorado em torno de movimentos extremados, que manipulam o desejo quotidiano e primário por uma vida sem crime. Perante uma liberdade que é tomada como dado adquirido, a segurança torna-se o principal fator eleitoral. Um candidato que prometa acabar com o crime, num país atolado de cadáveres, é altamente sedutor. Esta narrativa ganha um contorno particular diante de uma população que vê uma brecha de possibilidade de regresso ao seu país. Aspetos ligados à perseguição política, aos abusos de poder policial, e a violenta inversão de políticas sociais não aparecem, em primeira mão, equacionados.
Em segundo lugar, temos um eleitorado que se auto-percecionada como tendo ascendido socialmente. Tratam-se de pessoas de baixa renda, pobres, que pela experiência de emigração conseguem obter renda maior, pelo que no conjunto de tais fatores não se reconhecessem mais como parte do eleitorado tradicional petista, em contraste com familiares, amigos e vizinhos que foram deixados para trás. Eles já não são pobres, são brasileiros da europa, são "europeus" no olhar do seu grupo social de origem, e assim se reconhecem. Ao mesmo tempo, muitos deles são colhidos pelo movimento de fake news via whatsapp.
Em terceiro lugar, temos um eleitorado recém-emigrado, uma elite económica brasileira que chega a Portugal fugida da violência. Uma elite historicamente construída no ideal da «casa grande e senzala», do fosso e da estratificação sociais, e assim ultra-conservadora que se revê numa parte significativa do discurso de Bolsonaro. Essa elite que culpa o PT pelos males do Brasil, olha para Bolsonaro como uma janela de oportunidade de regresso ao seu país, sabendo, ainda para mais, que aquele será um presidente que protegerá os interesses desse eleitorado.