11.12.22
A celebração da vitória de Marrocos sobre Portugal como uma vitória dos oprimidos contra o colonialismo é um sintoma evidente do ambiente de «guerra cultural» que se vive no Ocidente. Este posicionamento, é produto de uma mudança social profunda que se iniciou, embora a passo, com o surgimento da Escola de Frankfurt e a Teoria Crítica, que defendia o dever de compromisso de transformação social pela ciência. Com este caminho programático e partindo de leituras marxistas e pós-marxistas, o binómio "opressor-oprimido" torna-se o núcleo da abordagem às dinâmicas de organização social, em que, como afirma Donald Noel (1968), os sujeitos tendem a explorar (ou até mesmo eliminar ou, em grau de menor violência, dispersar) um grupo externo (o "outro") para efeitos de benefício económico. De acordo com David Nibert, em Animal rights/human rights: entanglements of oppression and liberation, a teoria da opressão compreende os seguintes elementos: (i) dispersão, eliminação ou exploração económica do "outro", em particular pelas elites dominantes; (ii) a existência de arranjos sociais que se baseiam em tratamento opressivo, o qual tem apoio por parte do poder estatal; (iii) construção e propagação de ideias em torno da desvalorização dos oprimidos, sendo a partir deste processo que nascem as ideologias racista, sexista ou especismo; (iv) a partir deste mecanismo, o preconceito torna-se eficaz e disseminado, e desse modo a discriminação torna-se prática comum; (v) verifica-se um reforço da opressão, i.e., torna-se naturalizada ou normalizada, e com ela ostatus quo é salvaguardado. Este modelo teórico parte da doutrina de que a opressão de grupos sociais inteiros (raciais, étnicos, económicos, sexuais, etc.) tem uma natureza sistémica, não podendo ser explicado por fatores individuais, como o preconceito ou a tendência inata para a violência. No entanto, tal como o autor argumenta, a opressão é maleável, podendo alterar o seu foco, passar a incluir no sistema protegido grupos outrora oprimidos, ou reforçar a opressão.
O que isto tem a ver com o futebol? Com o crescimento da Teoria Crítica e a disseminação da teoria da opressão, cada vez mais vozes ditas silenciadas pela história, passaram a estar presentes na produção de discurso político e científico. O conceito de lugar de fala é introduzido, dando conta de que a produção discursiva detém inúmeros lugares de enunciação. Com os trânsitos ativismo-academia, sobretudo no plano estudantil, onde é mais permeável a interpretação suave e binária dos acontecimentos históricos, as lutas pela libertação dos oprimidos passaram a redesenhar a História em favor da Memória. É neste processo que se inclui a reivindicação descolonial, que procurando produzir historiografia e memória fora dos cânones etnocêntricos ocidentais, explicitando que os povos colonizados não eram povos sem história até à chegada dos europeus, mas, como sabemos, com passado cultural e civilizacional próprio e rico, e de igual modo, aceitando "deitar fora o bebé com a água do banho", ao desconsiderar (i) que os acontecimentos históricos têm uma contexto de produção, (ii) que os factos não devem ser dados a leituras ideológicas, a não ser a do aprendizado para se tornarem irrepetíveis.
Ora, quando se faz dos colonos europeus os demónios da história, faz-se uma opção ideológica, que apaga o facto de que a violência da ocupação territorial não foi uma invenção europeia colonial (e antes fosse pois teria tido um período circunscrito), que a escravatura não foi, igualmente, uma invenção europeia colonial (e antes fosse pois teria tido um período circunscrito), que muitos dos povos defendidos como oprimidos contra o opressor branco são ou foram opressores geográficos. Os povos norte-africanos foram invasores das regiões subsaarianas, com base numa guerra de expansão religiosa (jihad) de onde traziam escravos, de que podemos dar como exemplo as guerras do Califado de Sokoto e do Emirado de Ilorin sobre o Império Òyó-Yorùbá, que juntamente com a guerra de libertação do Dahomé do jugo daquele império, alimentaram o Brasil de escravos no séc. XVIII e XIX. Bem assim, precisamos ter presente que a teoria da colonialidade, proposta por Aníbal Quijano (2005) tem os seus limites. Quando as novas gerações brasileiras defendem um ódio a Portugal por causa da colonização, precisam compreender que o Brasil independente tem 200 anos, e que a sua independência foi feita, em boa medida, no sentido de garantir a continuidade do comércio de escravos, já mal visto em terras portuguesas. Não é por acaso que a independência ocorre a 7 de setembro de 1822, e somente em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, tem lugar o fim do comércio de escravos, e a escravatura é extinta somente em 1888, como último gesto de tentativa de segurar a monarquia. Não obstante os sedimentos coloniais terem prevalecido, a culpabilização ad eternum de Portugal sobre as opções políticas do Brasil, sobre a corrupção, o racismo estrutural, entre outros, é uma interpretação abusiva da teoria da colonialidade.
Acontece, portanto, que se celebra um Marrocos colonial para se odiar o Portugal colonial.