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Anatomia da Palavra

FerNão de Magalhães

nos céus de um mundo polarizado

Novembro 27, 2023

Vivemos um tempo em que a ciência é sobretudo um ato político. Qualquer olhar situado, contextualizado, mas não menos crítico, sobre factos e personagens históricas é desconsiderado, em favor de uma polarização entre os elogios da poeira do nacionalismo e a crítica feroz de quem quer passar sobre a história a vassoura moral. Se a primeira peca por desconsiderar que a história não é linear, e que vozes discordantes da normalidade da época eram ouvidas, que a crítica pode bem ser construtiva e que as tradições e a memória história são uma invenção (ou para usar um bom termo de Triaud, “o passado [é] composto”), a segunda postura é marcada por um quadro teórico em ascendência nas universidades do mundo ocidental, que detém uma vocação ideológica de “teoria final”. Trata-se de olhares antagónicos e pouco prolíferos, considerando que a história é um tecido intricado, onde cada fio representa uma perspetiva única e muitas vezes contraditória, implicando um reconhecimento da diversidade de perspetivas históricas a fim de produzir-se uma compreensão mais completa e justa do passado.
Isto a propósito da astrónoma Mia de los Reyes, do Amherst College no Massachusetts, que pretende entrar com um processo junto da União Astronómica Internacional para retirar o nome de Fernão de Magalhães das galáxias-satélites anãs na Via Láctea, conhecidas por “Nuvens de Magalhães”. A sua justificação é que se trata de uma homenagem a um "colonialista, traficante de escravos e assassino".
Observemos o mérito da proposta. Em primeiro lugar, as homenagens desta natureza refletem um consenso político e social de um tempo. Tendo presente que, como escreveu Hartley, “o passado é um país estrangeiro, lá faziam-se as coisas de forma diferente”, é aceitável que à luz dos nossos valores atuais se revejam determinadas homenagens, seja por via de estátuas, seja por Via Látea. Nesse sentido, havendo um consenso, é possível e não traz nada de mal ao mundo, que as ditas nuvens recebam outro apelido, ou uma designação neutra, conquanto se tenha presente que tal escolha não pode refletir uma visão política a contrario, isto é, de ajuste de contas com a história, sob pena de receber descrédito em tempo futuro.
Posto isto, convém ter presente as afirmações de Mia de los Reyes, as quais denotam de forma evidente um olhar politizado sobre a história, enquanto seleção de propostas teóricas de um quadro mais alargado da Teoria Crítica, alicerçada sobre uma visão persecutória e reformuladora da história a partir de uma leitura linear e maniqueísta dos acontecimentos, de inspiração pós-marxista, numa dialética pós-material entre “opressores e oprimidos”. Isto porque considerar Fernão de Magalhães “colonialista” implica um olhar – usando um termo de Danto – de “alinhamento retrospetivo”, em que se compõe o passado a partir do conhecimento do presente, desconsiderando, ainda, que o sufixo “ista” se refere a uma posição ideológica que Fernão de Magalhães teria em favor da posse de territórios através de colónias. Ora, à época, o empreendimento marítimo era de expansão de rotas comerciais. Em segundo lugar, a adjetivação como “traficante de escravos” é uma acusação com pouca sustentação, já que existem poucas ou nenhumas evidências do envolvimento de Fernão de Magalhães no tráfico de pessoas para efeitos de escravatura. Terceiro, a designação como “assassino” presumivelmente refere-se aos conflitos vividos nas Filipas (Batalha de Mactan) que resultaram na sua morte. A avaliação desses conflitos é pantanosa, mas podemos tomar por boa que existe uma espécie de culpa moral porque Fernão de Magalhães conduzia expedições a territórios habitados e que os confrontos com habitantes locais são produto de uma investida exógena, portanto, ilegítima.
Assim, como avaliação da proposta, é possível reconhecer mérito, tendo por base o reconhecimento de que vivemos um contexto de necessária avaliação crítica da história, donde não parece despicienda uma renomeação das nuvens com um nome mais consensual como por exemplo Nuvens Mandela, ou um nome neutro, como Nuvens Púrpura.
A proposta de renomeação, quando despojada de uma abordagem ideológica, levanta a questão fundamental de saber como devemos lidar com as homenagens a figuras do passado à luz dos valores contemporâneos. Todavia, a forma como a astrónoma fundamenta o seu pedido reflete um olhar sobre a história de natureza persecutória, revisionista e ideológica, que desmerece a proposta e reforça a polarização social. Este modus operandi só é percebido como meritório dentro – permitam-me a metáfora de contexto – de uma nuvem que paira sobre segmentos dos campus universitários para quem os novos “bens de luxo” são as medidas que visam purificar a sociedade, numa nova forma de ajustes de contas com a história e reprogramação social que refletem um novo “despertar religioso”. É uma pena, porque obrigam a sociedade a jogar “fora o bebé com a água do banho”, em nada contribuindo, portanto, para uma saudável reflexão, discussão e compreensão matizada do passado sem perder de vista um quadro ético humanista.

Anielle Franco e a leitura marxista do antirracismo

Novembro 02, 2023

Anielle Franco, ministra brasileira da Igualdade Racial, e irmã de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada por (ao que tudo indica) forças bolsonaristas, é, tal como a sua irmã foi, uma importante ativista antirracista, com uma trajetória académica significativa na área, nomeadamente na North Carolina Central University e na Florida A&M University, instituições historicamente ligadas ao pensamento negro.

O pensamento e a ação de Anielle Franco são marcados por uma tradição teórica rica conhecida por Teoria Crítica, concretamente a Teoria Crítica da Raça, na esteira da qual se desenvolve noções como “racismo estrutural”, “opressão racial” e “intersecionalidade”, categorias que permitem uma compreensão e ação sobre as dinâmicas racializadoras das sociedades humanas, em particular nas sociedades de passado colonial e esclavagista, nomeadamente os Estados Unidos da América, onde o racismo deteve e detém uma força normativa profunda, sendo ao mesmo tempo estrutural, sistémico, institucional e legal. Basta lembrar as leis Jim Crow e o impacto atual das mesmas. No entanto, devido aos trânsitos entre a Universidade e os movimentos sociais, a Teoria Crítica foi adquirindo uma dimensão politizada, já que ela se propõe a ser um instrumento de transformação social, o que faz com que as categorias deixem de ser instrumentos de análise e passem a ser pressupostos ideológicos.

Devido às mudanças nas sociedades ocidentais, em particular no eixo norte-ocidental, as batalhas dos movimentos sociais passaram a focar-se, sobretudo, em questões pós-materiais, tendendo a desligar essas questões de questões materiais como pobreza. A leitura é, evidentemente, de inspiração marxista (pensamento que, de resto, está na base da Teoria Crítica), considerando que é preciso mudar a superestrutura, concretamente a cultura, para que ela mude a estrutura social de base. É nessa esteira que vamos encontrar uma hiperatenção à linguagem e ao pensamento, que levam a uma crença de que a sociedade muda por decreto e por policiamento público (cuja manifestação é o cancelamento nas redes sociais). É por isso que a pensadora negra @pretaderodinhas vem salientando as incongruências do ativismo de Anielle Franco e a sua equipa. Em setembro, Marcelle Decothé, assessora de Anielle Franco criticou a “torcida” do São Paulo, através das palavras “Torcida branca, que não canta, descendente de europeu safade... Pior tudo de pauliste”, escreveu. No dia de ontem, a ministra afirmou que o termo “buraco negro”, o qual define uma região no espaço com campo gravitacional tão intenso que também absorve a luz, é “racista”.

O racismo é, inegavelmente, um problema endémico das nossas sociedades, que precisa ser combatido. É preciso uma política intransigente de reversão de lógicas enraizadas de segregação. Tenho as maiores dúvidas que esta dinâmica de inspiração marxista, que produz uma dicotomia racial estanque e absoluta, numa versão reciclada da “luta de classes”, que passa por uma ação sobre a linguagem, uma desconsideração contextual e por uma dinâmica de purificação social do dissenso – em que não basta ser antirracista, é preciso que se o seja de uma determinada maneira, que exclui inclusive ativistas negros desalinhados com um conjunto de dogmas – seja o caminho. De resto, já dizia McWhorter que esta lógica capturou as populações negras e lhes é prejudicial. Em nome da liberdade e da justiça social, aceito visões contrárias e que até possa estar enganado.  

 

O que é isso de descolonizar os manuais de História?

Outubro 30, 2023

No âmbito das disputas pós-materiais, das disputas imateriais que versam nas sociedades ocidentais, existe um processo chamado de “descolonização da cultura e do conhecimento”. Ora, no caso português, ele é muito voltado aos manuais escolares, considerando que a memória histórica em Portugal detém ainda uma forte componente, uma forte carga, lusotropicalista, que enfatiza a narrativa do bom colonizador, do excecionalismo colonial português e que enfatiza, portanto, esse lado da expansão marítima como o grande feito nacional, prevalecendo uma narrativa que pesa negativamente sobre as populações que foram colonizadas e que foram objeto de ocupação. Ora, parece, evidentemente, uma reivindicação justa que, efetivamente, passaria por essa revisão da narrativa histórica, de modo a apresentar um discurso científico rigoroso que contextualize, que explique que houve efeitos negativos nos povos ocupados, nos povos colonizados, que efetivamente o escravo não pode continuar a ser apresentado nos manuais escolares de uma forma coisificada, ou seja, em que as pessoas cujos corpos foram escravizados, que foram comerciados para efeito de escravização, sejam tratados como parte de um vasto pacote de produtos comercializados como as especiarias. Efetivamente, é preciso humanizar essas pessoas que foram objeto de violência física, psicológica e simbólica, porque foram também expropriadas da sua cultura.

A noção de descolonização da cultura, pode, todavia, trazer um peso político-ideológico que tem afastado, em certa medida, partidos, movimentos, de pessoas mais do centro e centro-direita, as quais temem, naturalmente, que o próprio processo ou exercício de descolonização possa ser uma transformação dos manuais escolares de uma narrativa de epopeia muito própria do Estado Novo, mas que já vinha da Primeira República e também desde a Monarquia, portanto, um contínuo da narrativa heroica portuguesa, numa narrativa diametralmente oposta, de condenação sem contextualização.

Ora o que nós precisamos, de facto, é de uma contextualização crítica, de uma avaliação crítica dos manuais escolares, de uma abordagem crítica, rigorosa e científica, que seja capaz ao mesmo tempo de explicar os feitos científicos que estão associados à expansão marítima portuguesa e dar um contexto rigoroso nos efeitos negativos, da coisificação, da industrialização do processo de escravatura, da transformação de um processo de comércio de escravos que existia e que faz parte da história da humanidade e que era comum em África, numa produção industrial de escravos sem ímpar.

Portanto, precisamos de um olhar rigoroso, crítico e, talvez o próprio conceito de descolonização, devido ao peso ideológico que foi ganhando, possa não ser o termo mais adequado, demandando por uma terminologia talvez de um olhar crítico sobre os manuais, uma desconstrução crítica de narrativas heroicas de modo a apresentar os acontecimentos, os factos históricos, de uma forma rigorosa que efetivamente seja capaz de explicitar o vanguardismo do processo da ida para o mar e ao mesmo tempo que manifeste os efeitos negativos sentidos pelos povos ocupados, pela violência colonial, pelo desenraizamento cultural e identitário sofrido pelos povos africanos que foram escravizados.

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O Dilema da Mudança e a Busca por Soluções de Compromisso

Outubro 19, 2023

Todo o mundo é composto de mudança, sabemos, e o conservadorismo é, muitas vezes, o medo ou ansiedade pela falência de um mundo ou de um estado de coisas favoráveis ou, ao menos, estáveis o q.b. Todavia, a mudança sempre foi a tensão entre o que permanece e o que se reforma, a rutura que emerge na continuidade. Mas entre a suave mudança há a revolução, aquela rutura que rasga as vestes da história e pretende uma nova alvorada. Mas entre as brumas da revolução há sempre algo que fica.

Hoje, em consequência da polarização e da emergência das chamadas “guerras culturais”, num mundo em que se misturam as batalhas pós-materiais ligadas às identidades com as pós-pós-materiais (geradas pela crise de abrandamento, estagnação e baixo crescimento das últimas décadas), vivemos a apologia da reforma do mundo, apresentada sob duas perspetivas radicalmente opostas: de um lado uma esquerda intelectual ultraprogressista e revolucionária, que considera que o mundo deve ser totalmente reformado, expurgando da sociedade qualquer marca de crenças, valores, códigos de conduta ou outra, vendo na ideia de tradição uma forma de opressão, e de outro uma direita ultraconservadora, radical e populista que entende que o mundo avançou em demasia em direção ao progressismo e às causas das minorias, desejando uma reforma retrospetiva em direção a uma imagem irreal de uma sociedade de pessoas de bem, tementes a Deus e heterossexuais, onde os valores tradicionais do “antigamente” são sagrados e inderrogáveis.

Mas há ainda uma vasta população que espera soluções de compromisso, mudança com estabilidade, políticas sociais e liberdade, com base no Estado de direito democrático, e são essas que, em primeiro lugar, não podem ser defraudadas para que em segunda fase se recuperem as que se perderem para as “soluções” radicais.

© fotografia

Brasil das guerras culturais

Setembro 25, 2023

O Brasil é, hoje, o exemplo mais completo da afirmação definitiva das guerras culturais como paradigma da vida política. Num país com índices de pobreza, fome, exclusão social e económica elevadíssimos, as batalhas voltaram-se para as questões morais, com uma luta intensa ao casamento homoafetivo, usando a Bíblia como instrumento e derrogando a separação de poderes e a laicidade.

da identidade de género

Setembro 10, 2023

Pode ser uma imagem de 2 pessoas e texto que diz "TRANSIDENTIDADE "O que interessa é que OS jovens estejam felizes. Porque a genitália tem de ser um problema na sociedade? Ο foco está em ajudá los a terem maior qualidade de vida" mas nem sempre é simples, sobretudo quando surgem crianças com quatro anos"
Não tenho problemas com a questão da identidade de género, e percebo a argumentação teórica de que o género é uma construção social, até porque, como já referi antes, há povos africanos onde a idade do corpo é mais importante do que a genitália, ou seja, é a idade que determina os papéis sociais, além de que o feminino e o masculino são papéis negociados e não plásticos.
Contudo, tenho reservas quanto ao modelo sócio-teórico em que vivemos, no qual o que se sente é sempre uma verdade incontestável e um dado adquirido. Por isso, não me opondo à mudança de identidade de género e a cirurgias de transformação biológica, defendo que estas devem acontecer numa fase adiantada da adolescência [o caso adquire contornos diferentes quando se manifesta em idade infantil], após profundo acompanhamento e avaliação psicológica. Não pode ser uma decisão de impulso, dado o problema de sérias consequências físicas numa possível reversão e não pode a família ser excluída do processo – nos EUA nos pais são forçados a aceitar o processo.
É impensável que seja mais fácil mudar de sexo biológico do que realizar um aborto.
Retomo: não tendo objeção ao procedimento, defendo que tem de ser feito com a máxima garantia de que se trata de uma decisão consciente, informada, maturada, e não de um impulso resultante de uma sensação que pode ser transitória sobre si mesmo. Não podemos passar da classificação como patologia à aceitação inquestionável. A identidade de género, a transidentidade, é um processo de autoconhecimento e isso não é feito com leveza, nem por impulso de ser trendy.

"ou Trump ou morte"

Agosto 25, 2023

 

Esta é a realidade nos EUA na era de TrumpTenho por profunda convicção que vivemos num período de desconsolidação da democracia liberal, donde sairá uma nova forma de democracia de feição illiberal, nos melhores casos, e regimes autoritários. Isto deve-se ao facto das gerações atuais não saberem o que é viver sem democracia liberal, pelo que têm pouco apreço pelo Estado de direito democrático liberal, e estão muito dados a soluções militares e autoritárias, em torno de homens providenciais. As redes sociais deram um forte impulso a esta realidade, fazendo da separação de poderes, das garantias de direitos fundamentais e de eleições livres algo irrelevante, sob ataque de populistas que se afirmam a voz do povo, desde que essa voz seja capturável por si, afirmando uma clara tirania da maioria. Eles são democratas, numa lógica baseada na ideia de que “é democracia quando eu mando e comando o povo”.

Purificar a Sociedade, um ímpeto

Agosto 22, 2023

A propósito da notícia que dá conta que a música "Fat bottomed girls" dos Queen foi retirada da plataforma Yoto, por ser "imprópria para crianças", ocorre-me dizer que vivemos um tempo de um ímpeto purificador social, ou de outra forma: de vários ímpetos. Eles manifestam-se na tentativa de expurgar vícios “morais” na ânsia que criar uma sociedade nova, um jardim do Éden terreno, cuja materialidade doutrinária vai do radicalismo cristão que procura recriar uma sociedade do casal heterossexual que vai à igreja ao domingo, temente a Deus e odioso da diferença, até à Igreja da Nova Sociedade dos Reencantados do Mundo, que pretende proteger as crianças num mundo de “ursinhes carinhoses”. Ambos querem expurgar a sociedade uns dos outros, da diversidade de pensamento, vendo o mundo numa batalha espiritual entre o “bem e o mal”, num maniqueísmo primário, enquanto justiceiros, uns da justiça social e moral, mas pós-material, e outros da justiça moral onde o amor ao próximo é mesmo ao próximo, i.e., àquele que se parece consigo. 

image © FlorenceD-pix

25 anos sobre o primeiro referendo ao aborto

Junho 29, 2023

Lembro-me de no norte do país haver senhoras e jovens que foram votar contra porque o padre lhes tinha dito que a lei era para as obrigar a abortar caso engravidassem, que era para as proibir de ter filhos. O problema não era o padre, que estava, apesar do abuso de poder, a fazer a sua batalha cultural, o problema era a iliteracia política que dominava (e em boa medida ainda domina) o país.

Imigração e Pânico Moral

Junho 26, 2023

A ciência política tem mostrado como o pânico moral é um dos elementos mais importantes na construção de um campo político radical de direita no Ocidente. Partindo de estereótipos, preconceitos, notícias falsas e teorias da conspiração, tais movimentos têm observado enorme implementação no Ocidente, tendo na imigração o seu leitmotiv. Um exemplo paradigmático é o crescimento da AfD na Alemanha na sequência da chamada "crise dos refugiados", que correspondeu a uma instrumentalização de notícias falsas sobre violações e crimes em massa (que não ocorreram) para criar um pânico moral na sociedade alemã. Na era da pós-verdade não é necessário que existam factos, apenas basta que as crenças mais íntimas sobre o "outro" tenham respaldo em qualquer site, blog ou post em rede social. 

Em Portugal as "guerras culturais" e o pânico moral têm observado escassa penetração, mas é possível encontrar reflexos dessa questão, desde fenómenos de negacionismo à importação da "grande substituição". Este texto no blog Blasfémias é sintomático desse pânico moral. A forma simplificada e assente numa lógica dicotómica em torno da imigração é exemplar dessa importação de um discurso que levou ao Brexit e à eleição de Trump. Convenhamos que ao contrário do populismo que se baseia em interpretações simples para fenómenos complexos, a verdade é que a imigração para o Ocidente é um tema com várias esquinas, que impõe uma análise equilibrada e ponderada. Embora não aprecie o discurso nativista da direita identitária(1), que propaga a ideia de que a globalização colocou as identidades nacionais sob ameaça, não me parece nenhuma concessão ao globalismo reconhecer que uma imigração at large impõe desafios às sociedades de acolhimento, em primeiro lugar no plano cultural, porque o multiculturalismo tende a ser um fenómeno de uniformização, e em segundo lugar um desafio económico, já que grandes contingentes populacionais não são fáceis de integrar. Assim, enquanto é importante reconhecer os benefícios trazidos pela diversidade cultural (como processo de desconstrução de estereótipos, racismo e preconceitos) e o potencial de contribuição dos imigrantes para a sociedade, também devemos considerar cuidadosamente os desafios que podem surgir a curto e longo prazo. Sem uma abordagem adequada, os desafios de integração podem levar ao surgimento de guetos, exclusão social e segregação, o que pode gerar tensões e conflitos. Este fenómeno é evidente em cidades como Malmo, na Suécia, e em vários pontos de Paris, por exemplo. 

De igual modo, o controlo fronteiriço parece-me um caminho necessário, através da verificação de antecedentes criminais e de uma avaliação cuidadosa dos imigrantes, a fim de garantir a segurança de todos os cidadãos. A cooperação internacional também desempenha um papel importante na troca de informações e no combate a atividades criminosas transfronteiriças. 

Paralelamente, a imigração não deve ser pensada como um processo de solução única para as questões demográficas e da segurança social. Essa medida revela-se um "penso rápido" que acabará por não resolver o problema de fundo, uma vez que os imigrantes que hoje contribuem para a segurança social e para o saldo demográfico, dentro de pouco tempo serão, igualmente, dependentes do mesmo fundo social. É essencial criar um tecido educacional capaz de responder às demandas do mercado, ao mesmo tempo que se apoie os jovens a terem filhos. 

Em suma, se o texto no Blasfémias parte de um contexto de pânico moral, contendo estereótipos e extrapolações, a verdade é que a imigração é um desafio gigante nas sociedades ocidentais, e que os modelos adotados por governos neoliberais (baseados no mercado pelo mercado) ou governos de esquerda (assentes numa lógica de portas abertas e multiculturalismo exclusivamente benemérito) padecem de considerar o processo a longo-termo. Para salvar a segurança social no imediato estamos dispostos a hipotecar a identidade cultural abrangente (porque a sociedade não é unidimensional, como imagina a direita radical)? Estamos a considerar que os contribuintes para o fundo social serão no futuro beneficiários? A política de portas abertas sem controlo não será um problema para segurança num futuro imediato? 

Todas as respostas implicam uma avaliação criteriosa e prudente, evitando discursos de pânico moral e de euforia multiculturalista. 

(1) ver o livro Os Identitários de Zúquete.

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Anatomia da Palavra é um blogue de João Ferreira Dias, escrito segundo o Acordo Ortográfico, de publicação avulsa e temática livre. | No ar desde 2013, inicialmente sob o título A Morada dos Dias Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

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Informação

João Ferreira Dias é Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, no Grupo Instituições, Governação e Relações Internacionais. Interessado por Direitos Fundamentais, Teoria Política e do Estado, Direito Constitucional, e Antropologia Religiosa.