O autor das palavras é assessor político do Chega e o seu post, conjugado com as declarações de Ventura de que é preciso condecorar o agente que matou Odair Moniz, sem apuramento dos factos, como recompensa simbólica pelo ato, permite compreender que, de facto, estamos perante uma guerra cultural em torno da ação policial do Estado. Isto mais não é do que uma importação da narrativa bolsonarista de “bandido bom, é bandido morto”, mesmo que em causa não esteja um bandido, mas apenas alguém que corresponde ao estereótipo. Portanto, há uma guerra cultural sobre a identidade biocultural e sobre a ideia de Estado policial, em que as forças de autoridade não devem ser escrutinadas. Qual o outro lado da rua? A ideia de que em cada polícia há um agressor. A verdade é que o corporativismo tem optado pela autopreservação, o que equivale a perpetuar problemas endémicos.
Por outro lado, a referência ao BE é parte dessa guerra cultural, ao centrar-se na ideia de que a Esquerda está de conluio com o globalismo e ao defender as minorias é, na verdade, cúmplice dos seus crimes, sendo o BE a "casa" dos bandidos. Uma vez mais, a fórmula bolsonarista em ação.
O jogador alemão, Kevin Behrens, foi afastado do plantel do Wolfsburg por se recusar a assinar uma camisola dos lobos feita para uma ação beneficente com as cores do arco-íris, tendo afirmado, “Não vou assinar essa merd@ gay”. As opiniões dividem-se nesta matéria, colocando em conflito duas dimensões: o direito à objeção de consciência e a decisão do clube de adotar medidas de justiça social. No entanto, a questão só surge porque houve publicidade da rejeição do jogador, fazendo do assunto matéria pública.
A exposição pública das suas palavras desencadeou uma tempestade de reações por parte da opinião pública, que pressionou o clube a agir de maneira célere. Esse tipo de situação revela a tensão entre a liberdade individual dos jogadores e as expectativas crescentes de que atletas e instituições desportivas adotem uma postura clara em questões sociais. O Wolfsburg, ao optar pelo afastamento de Behrens, pareceu querer enviar uma mensagem de que atitudes ou falas consideradas ofensivas ou contrárias aos valores de inclusão não seriam toleradas, mesmo que oriundas de convicções pessoais.
No entanto, o que é particularmente relevante neste caso é o facto de que, se Behrens tivesse simplesmente recusado a assinar a camisola sem fazer um comentário explícito ou ofensivo, o desenrolar dos eventos poderia ter sido muito diferente. Isso levanta a questão de saber até que ponto os jogadores são responsáveis pelas suas palavras em ambientes que, em princípio, deveriam ser privados, e como a divulgação dessas palavras afeta suas carreiras.
A questão da objeção de consciência — o direito de recusar-se a realizar certos atos com base em crenças pessoais ou religiosas — é amplamente reconhecida em muitas áreas, mas no mundo do desporto, e particularmente em organizações que promovem valores como diversidade e inclusão, há um equilíbrio delicado a ser mantido. Behrens, ao expressar as suas convicções naqueles termos, transformou um ato de recusa pessoal em uma controvérsia com implicações mais amplas. Ou seja, tornou o assunto num assunto político.
Ao tornar-se público, o incidente transcende o âmbito de um conflito entre clube e jogador, e torna-se um campo de batalha para debates sociais mais amplos. Os defensores de Behrens alegam que este está a ser cancelado, com a sua liberdade de expressão a ser cerceada, por causa do avanço do "wokismo". Já os críticos, por outro lado, advogam a necessidade de que figuras públicas, especialmente atletas de clubes grandes, sejam responsáveis pela imagem que projetam e pelas mensagens que transmitem, particularmente em temas sensíveis como a inclusão da comunidade LGBTQIA+.
Esse episódio também ressalta a necessidade de políticas claras dentro dos clubes sobre como lidar com questões de objeção de consciência e como garantir que divergências sejam resolvidas sem que se transformem em crises públicas.
O relativismo cultural é um tema que não pode ser tratado de modo polarizado, sob pena de deixar escapar as mais nucleares curvas da discussão. Em sobrevoo, o relativismo cultural é uma proposta pós-modernista que resulta do reconhecimento de que a colonização europeia do mundo deu origem a uma sensação de universalismo humano de forma abrangente, o que não corresponde à verdade, dado que a diversidade humana, embora possua verdadeiros universais culturais, tem matizes de tal ordem locais que impossibilitam a proposta de monismo cultural. Nesse sentido, o relativismo defende a necessidade de avaliar as culturas nos seus contextos e valores próprios. Esta ideia entra em choque com o primado liberal de que há valores que transcendem culturas e geografias, como os Direitos Humanos, direitos inerentes à dignidade que não podem ser desconsiderados em razão de localismos.
Essa questão ganha maior dimensão quando analisada nas nossas geografias ocidentais, ou seja, quando o relativismo cultural passa a ter de ser avaliado em razão de fluxos migratórios. Assim, o bom senso — categoria em desuso — diz-nos que os povos (i) devem ter o direito à sua memória e identidade étnica, cultural, religiosa, mesmo em contexto migratório; (ii) esses direitos não se sobrepõem ao ordenamento jurídico do país de chegada, que tem no topo os Direitos Humanos.
Ora, sucede que em razão da polarização e dos populismos de vária ordem, temos duas teses em confronto: a de que os migrantes devem abandonar as suas tradições por completo, adotando a cultura de chegada e remetendo as suas crenças religiosas para o âmago privado, e a de que qualquer alerta sobre choque cultural é uma cedência ao populismo de direita radical.
Esta polarização inquina o debate. Pior, inquina os processos de acolhimento dos migrantes; primeiro, porque os transforma em pessoas hipervigiadas, vistas como potenciais criminosos; segundo, porque, em sentido diverso, faz destes vítimas absolutas de um sistema capitalista hegemónico e opressor.
Porém, na realidade as coisas processam-se de formas muito mais complexas. Isto porque, de facto, os imigrantes são sujeitos a um sistema de exploração evidente, com sobrelotação habitacional e exploração laboral, seja por meio de serviços de transporte e entregas, como Glovo, Bolt e Uber Eats, o que fere a sua dignidade enquanto pessoas; e, ao mesmo tempo, não têm sido poucos os casos em que o relativismo cultural é posto em causa. Em Lisboa têm decorrido casos de assédio por parte de jovens motoristas da região do Indostão a passageiras; no Alentejo foram reportados casos de assédio por parte de trabalhadores agrícolas da mesma região a jovens e mulheres; e, em Benavente, foram denunciados casos de assédio a menores, entre os 9 e os 16 anos, no trajeto que liga o pavilhão da Casa do Povo, onde decorrem as aulas de Educação Física, e a Escola Duarte Lopes. Falamos, sempre, de pessoas do sexo masculino, entre os 20 e os 35 anos, que, estando sozinhos no país, oriundos de países onde os direitos das mulheres são comprimidos, agem de forma contrária à norma social e jurídica nacional.
Esta situação não pode ser considerada de forma polarizada nem populista, ou seja, não se deve olhar para os acontecimentos adotando o viés do “eles”, nem o da desculpabilização. A única forma de evitar estas situações é realizar uma integração coerente, continuada e plena, através de mecanismos públicos de introdução às normas sociais e jurídicas elementares, de aprendizado da língua, de envolvimento comunitário. Evidentemente que isso só pode ser feito com políticas migratórias bem desenhadas, o que não acontece.
No quadro das lutas pela hegemonia cultural e de guerras culturais que vivemos, de vez em quando vem à tona a questão do “blackface”, pratica em que uma ou mais pessoas brancas pintam a cara de negro de modo a representarem alguma personagem negra. O caso mais recente foi o de um grupo de adeptos dos países baixos (ex-Holanda) que pintaram a cara de negro, colocaram cabeleira e vestiram a camisola da seleção do país de modo a representarem o lendário jogador Ruud Gullit.
Ora, o “blackface” é uma prática historicamente associada ao racismo e à discriminação racial, tendo surgido nos Estados Unidos, no século XIX, nos minstrel shows, apresentações teatrais que retratavam pessoas negras de maneira estereotipada e desumanizante. Atores brancos usavam maquiagem para escurecer a pele e exagerar características faciais, criando personagens que perpetuavam ideias racistas. O “blackface” ajudou a cimentar estereótipos negativos sobre pessoas negras, retratando-as como preguiçosas, pouco inteligentes, exageradamente alegres ou perigosas. Esses estereótipos influenciaram a perceção pública e justificaram a discriminação e a segregação racial.
Com a emergência de uma cultura de consciência e justiça social e de combate ao racismo, o “blackface” tornou-se uma prática moralmente inaceitável. Naturalmente que esse processo contrahegemónico e de justiça social, estando numa fase em que se debate com a emergência de um radicalismo conservador, tende a adotar, igualmente, reações radicalizadas, contribuindo para a polarização.
Quer isto dizer que se o “blackface” é uma prática inaceitável quando visa estereotipar e desqualificar pessoas negras, pode, ainda, acontecer que seja uma prática contrária, que visa enaltecer determinada personalidade pública ou histórica. É o que acontece neste caso, em que Gullit, a suposta vítima, se sente elogiado. Questionado sobre o caso, o jogador internacional neerlandês Nathan Aké, negro, afirmou não ver qualquer problema com o assunto.
Assim, em nome da justiça social, precisamos verificar se práticas como esta visam desqualificar pessoas negras, contribuindo para o racismo, ou se, pelo contrário, têm por propósito enaltecer. Deste modo, a abordagem tem de ser caso a caso, evitando uma condenação por arrasto, de natureza censória e de purificação social que funciona em sentido contrário à benemérita intenção.
A ideia de que a família tradicional está sob ataque é um dos elementos centrais dos discursos políticos da direita radical, participando de forma estruturante nas “guerras culturais” em vigência. Trata-se de uma ideia que, não tendo respaldo na realidade, aposta numa dimensão de “pânico moral”, ou seja, visa desestabilizar uma segurança imaginada entre setores conservadores e, sobretudo, ultraconservadores. Esses setores observam o avanço dos direitos das minorias sexuais como uma ameaça aos seus valores, como se ganhos de direitos representassem um perigo concreto para o seu mundo.
Nesse quadro de entendimento – que vimos, por exemplo, a propósito da família de Guimarães que não pretendia que os filhos frequentassem a disciplina de Cidadania –, há uma crença de matriz religiosa de que o “marxismo cultural”, enquanto encarnação do mal, tomou conta dos espaços públicos, nomeadamente do Ensino. Segundo essa crença, o objetivo seria desestruturar a sociedade como a conhecemos, sendo o seu elemento mais nuclear a família.
Desse modo, a simples existência pública de homossexuais, transsexuais ou pessoas não-binárias corresponde a uma ameaça concreta, já que, para esses grupos, há o perigo de “desencaminhar a juventude”. Tais identidades não são consideradas apriorísticas, mas antes resultado de um programa político de esquerda marxista cultural para acabar com a sociedade ocidental.
Portanto, a família tradicional não está sob ataque, até porque ela sempre foi, em grande medida, uma imaginação política e religiosa: o casal heterossexual, casado para a vida, com filhos, num lar devoto. Além do mais, verifica-se que a heterossexualidade permanece dominante, como padrão biológico e social.
Assim, o que encontramos é um pânico moral que é alimentado por setores políticos radicais para efeitos eleitorais. Ao imaginar que a família dita tradicional está ameaçada, permite-se articular um conjunto de valores nacionalistas em torno de identidades sociais fechadas e assentes no monismo cultural e sexual.
Sovietização, marxismo cultural, e termos semelhantes são usados cada vez mais no léxico político português, manifestando a importação das guerras culturais norte-americanas e uma trumpização da direita portuguesa.
Na apresentação do livro “Identidade e Família”, Pedro Passos Coelho, a páginas tantas, afirma que “as famílias precisam de ser ajudadas na educação dos filhos e no ensino, mas dificilmente o conseguiremos com uma espécie de sovietização do ensino em que queremos dirigir o ensino em favor de uma determinada perspetiva que nem sequer é dominante na sociedade, quanto mais nas famílias”. A referência a uma “sovietização do ensino” tem um contexto concreto que poderá escapar ao leitor menos familiarizado com as chamadas «guerras culturais», um conflito sobre matérias de natureza imaterial, isto é, que operam no plano “dos costumes”, como interrupção voluntária da gravidez, direitos das minorias sexuais, identidade de género, e temas similares que apontam a uma disputa entre progressismo e conservadorismo, a partir de um tendencial e crescente prisma de inegociabilidade, em que o objetivo é silenciar o campo oposto.
O recurso ao termo “sovietização” surge num quadro de parentesco ideológico à referência a “marxismo cultural”, e refere-se à crença, por parte de setores mais conservadores, de que está em curso um plano intencional de combate à família (leia-se família heterossexual) e aos valores do Ocidente, que é operado a partir do Ensino, com a adoção, de uma forma ideológica e programática, das teses da Escola de Frankfurt. A Escola de Frankfurt foi uma corrente de pensamento filosófico e sociológico do pós-I Guerra Mundial e do contexto do surgimento do nazismo, e agregou alguns dos maiores pensadores europeus daquele período, muitos deles de ascendência judaica, que se propuserem a avaliar criticamente o contexto em que viviam, a crise dos paradigmas científicos ocidentais do iluminismo e do positivismo, e a fazer uma releitura do marxismo. Essa escola de pensamento deu origem à Teoria Crítica e aos seus desenvolvimentos teóricos posteriores, que incluíram a presença do pensamento de Antonio Gramsci sobre contrahegemonia cultural. Em geral, trata-se de um pensamento progressista de feição pós-marxista e pós-gramsciana que advoga que o mundo se organiza em torno de estruturas e discursos que perpetuam poder e uma supremacia cultural, económica, social, de matriz ocidental, em que determinados grupos sociais são oprimidos, sendo que a superação dessa opressão não é feita através de mecanismos das democracias liberais capitalistas, mas através de uma mudança total de paradigma que supere a natureza exploradora, segregadora, opressiva do capitalismo. Trata-se, portanto, de uma releitura da luta de classes para incluir uma luta entre cultura hegemónica e grupos sociais oprimidos, alavancada num arcaboiço teórico complexo que incluem Estudos de Raça, Estudos de Género, Estudos de Gordura, etc., que se dedicam a leituras contrahegemónicas.
Esse processo intelectual é visto como uma intenção ideológica progressista e radical de Esquerda, formadora da chamada “Cultura Woke”, que ameaça a paz social e os ténues equilíbrios da tradição ocidental. A contrarresposta tem vindo de setores mais radicais e ultraconservadores da direita, que utilizam as teses da Teoria Crítica como argumento para uma contraofensiva em favor “da família” e “da tradição”, que resultam num programa de contração até ao núcleo elementar dos direitos das mulheres e das minorias sexuais, étnicas e raciais. É, em suma, uma reação de “pânico moral” não apenas às mudanças sociais, mas a um setor progressista também ele moralizador.
Sucede, contudo, que a vaga “woke” que assolou os Estados Unidos, com naturais exageros de uma onda revolucionária da Nova Esquerda imaterial, nunca teve efetivo impacto em Portugal, tirando o fugaz episódio sobre corpos e representações de personagens trans no Teatro São Luiz.
O que se verifica é, portanto, uma importação de uma agenda trumpista de «guerras culturais» para Portugal, através de um setor mais ultraconservador da direita portuguesa, que transcende os muros do Chega, e ao qual Passos Coelho decidiu se associar, seja por mudança do seu perfil político ou porque notou que o vento sopra na direção de um recomposição da Direita Ocidental, de que o Partido Republicano é exemplo, mas que se estende pela Europa, com Órban na Hungria, Le Pen em França ou Meloni em Itália.
De modo especial entre as elites políticas e intelectuais portuguesas, há um longo historial de imaginar um excecionalismo português, como parte daquilo que, muito bem, Eduardo Lourenço chamou de “hiperidentidade”. O mais evidente desses excecionalismos foi e, em boa medida, ainda é, o excecionalismo colonial, a arte única da natureza portuguesa – a que Adriano Moreira deu o nome de “modo português de estar no mundo” – de conviver com outros povos sem que essa relação tivesse a marca do poder, do racismo ou do darwinismo social. É uma memória social falsa, um artifício político de profundo poder social.
Um outro excecionalismo, muito recente, era o do país sem populismo. Essa ideia foi uma criação académica, fruto de uma metodologia excessivamente quantitativa da Ciência Política, que no vazio da abordagem qualitativa não foi capaz de olhar para a realidade, nem a longo-termo, nem nas suas dinâmicas sociais. Um país messiânico, de baixa escolaridade e pobre, não só seria sempre propenso ao populismo, como o teria em doses de longa duração. Do populismo militar e do “operariado” de Otelo ao populismo de Portas, marcado pela penetração do argumentário lepenista sobre “subsidiodependência” e perigoso da imigração, passando pelo populismo bloquista na era troika, Portugal nunca foi imune ao fenómeno, como bem mostra Zúquete, na sua obra Populismo: lá fora e cá dentro, obra que salva a face de forma mais evidente e pública da disciplina de Ciência Política.
Ora, na condição de fenómeno ocidental, cujos processos de rápida transnacionalização são bem estudados, o populismo de direita radical não só chegou a Portugal como se instalou de vez no coração da sociedade e da política nacional, sendo capaz de transpor fronteiras ideológicas e sociais, na sua condição mais evidente de produção da ideia de representação da voz do povo. O Chega não difere, portanto, de qualquer partido da direita radical populista, na sua natureza de antissistémico, de populismo “para cima” e “para baixo”, i.e., de combate às “elites corruptas” e aos cidadãos que não são “do bem”, ou nas suas tendências iliberais de combate à liberdade de imprensa e ao escrutínio público, ou à diversidade e ao multiculturalismo.
Com efeito, a agenda iliberal no plano “dos costumes” tem sido fomentada Rita Matias, jovem deputada do Chega, de grande influência nas redes sociais. Próxima de Ana Campagnolo, jovem deputada bolsonarista, Rita Matias importa a “pauta” bolsonarista anti-esquerda, ou seja, em torno da defesa da “família tradicional” e do combate à dita “ideologia de género”. De modo evidente e fático, estamos no plano das chamadas “guerras culturais”, ou seja, uma disputa de natureza imaterial (ou pós-material) em torno de temas de particular dimensão moral, como o direito ao aborto, o casamento e adoção por parte de casais homossexuais, a identidade de género, o lugar da religião na sociedade, o racismo como mais ou menos estrutural, entre outros, que por terem essa natureza moral produzem polarização e incompatibilidade. Assim, as “guerras culturais” são uma batalha pela alma do país, para usar de modo livre o título da obra de Andrew Hartman, A war for the soul of America: A history of the culture wars.
Num momento em que se verifica uma viragem à direita em todo o Ocidente, com uma concentração da esquerda em matérias ditas “identitárias”, cujo abandono ou secundarização das questões materiais de pobreza e exclusão em favor de lutas pós-materiais que procuram uma purificação social, facto que muito contribuiu para o crescimento da direita radical e da sua expurga do multiculturalismo, é inevitável que o fenómeno das “guerras culturais” extravase a realidade americana. Se há décadas que o tema tem vindo a crescer e foi essencial na eleição de Donald Trump, agregando ressentidos da pátria com evangélicos, o fenómeno teve reflexo na sociedade brasileira, em termos absolutamente idênticos. Em Portugal, Rita Matias soube canalizar o assunto para ganhar o seu espaço no meio mediático e entre uma população jovem que vem se manifestando mais conservadora e que se confronta com a radicalização esquerdista nas escolas e universidades, num fenómeno também ele global. As questões identitárias de direita, com a agenda ultraconservadora, foram também objeto de apropriação pelo partido ADN e apareceram na AD pela boca de Paulo Núncio.
Será, portanto, inevitável que o crescimento musculoso do Chega, terceira força política no parlamento, produza o efeito de fazer das “guerras culturais” tema senão central, pelo menos de enorme importância. Dado que o ultraconservadorismo religioso em Portugal não é equivalente ao norte-americano ou brasileiro, em que os movimentos evangélicos constituem grandes grupos de pressão política, poderemos não experimentar as fissuras sociais que ocorreram nesses países. Isso não significa, contudo, que não venhamos a ter tensões sociais e políticas em torno destas questões, com uma possível compressão de direitos até ao seu núcleo essencial, o que configurará um retrocesso em conquistas de direitos. Caberá à AD o papel de garantir a integridade das conquistas civilizacionais e humanistas derivadas da Constituição democrática, enquanto a Esquerda deverá continuar a fazer destas questões bandeira, desta feita de forma menos divisionista e purista, se quiser que haja uma ampla plataforma social em torno das questões. Por fim, uma nota importante para o papel que os meios de comunicação social poderão ter neste processo, haja visto que as guerras culturais tendem a mobilizar paixões e, assim, potenciar o sensacionalismo mediático, o que produzirá efeitos no plano da solidariedade e da convivência social.
A conjuntura política brasileira dos últimos anos serve como um exemplo emblemático da consolidação das guerras culturais como um eixo dominante nas interações políticas, reconfigurando o espectro político e a agenda pública. Este fenómeno ganha contornos particulares num país que enfrenta desafios socioeconómicos críticos, com índices alarmantes de pobreza, insegurança alimentar, exclusão social e desigualdade económica. Paradoxalmente, a arena política tem se distanciado progressivamente das questões materiais urgentes, deslocando o foco para embates em torno de pautas morais e identitárias.
Um dos campos mais significativos dessa disputa cultural é o debate em torno do casamento homoafetivo, que se tornou um vértice de polarização aguda, frequentemente permeado por discursos que se valem de interpretações particulares de textos religiosos, notadamente a Bíblia, como fundamentação para argumentos políticos. Este recurso a referências religiosas na disputa política não só desafia a doutrina da separação de poderes, mas também coloca em xeque o princípio constitucional da laicidade do Estado brasileiro, que deveria garantir um espaço público neutro em relação a questões de crença religiosa.
A instrumentalização da religião nas guerras culturais brasileiras revela uma complexa interação entre dimensões religiosas, culturais e políticas, onde discursos teológicos são transpostos para a esfera pública como meio de contestação a direitos civis e liberdades individuais. Esta dinâmica não somente subverte a laicidade estatal, mas também transforma o espaço público em uma arena de confronto ideológico, onde as disputas transcendem as tradicionais linhas político-partidárias e se ancoram em uma moralidade absolutista.
Ademais, a ascensão dessas guerras culturais, com sua ênfase em questões morais e identitárias, tem o efeito colateral de desviar a atenção e os recursos das questões socioeconómicas prementes, que demandam soluções urgentes e políticas públicas eficazes. Este redirecionamento do debate político compromete não apenas a capacidade do Estado em responder às necessidades materiais de sua população, mas também fragiliza o tecido democrático, ao polarizar a sociedade e erodir o consenso em torno de valores democráticos fundamentais.
Neste contexto, torna-se imperativo uma reflexão crítica e profunda sobre o papel das narrativas culturais e religiosas na configuração da vida política brasileira e suas implicações para a democracia, a governança e a coesão social. A compreensão desses fenómenos é essencial para a elaboração de estratégias que promovam a inclusão, o respeito às diferenças e o diálogo construtivo, elementos vitais para a construção de uma sociedade mais justa, equitativa e verdadeiramente democrática.
O poema recitado por Amanda Gorman na cerimónia da tomada de posse do presidente estadunidense Joe Biden estava previsto ser traduzido, para holandês, pela escritora Marieke Lucas Rijneveld, com o aval da primeira. No entanto, um artigo de Janice Deul, jornalista e ativista negra, no jornal Volkskrant, fez com que Marieke desistisse, face à onda de críticas. Janice Deul argumenta que a tradução do poema deveria caber a "um artista local, jovem, uma mulher assumidamente Negra”. Eventualmente ela mesma, Janice Deul.
É importante ter presente, claro, que tal como Doris Sommer e outros autores mostram, há sentimentos e experiências que estão racialmente circunscritas. Mas mesmo Sommer, autora branca, é capaz de traduzir e inscrever as circunstâncias negras na literatura. É por isso que queiramos ou não, a reação de Deul e afins é populismo de esquerda. Ao radicalizar as questões raciais esvazia-as de conteúdo e impede a simpatia de fora. Ironicamente, o que os movimentos de militância racial radical fazem é apropriar-se de um elemento cultural judaico, a "pureza", para construir o seu discurso e imaginário populista racial. Não é por acaso que a sua narrativa sobre "apropriação cultural" é a versão inversa da autenticidade do nacionalismo. Tanto uma quanto a outra desconsideram o mais elementar aspeto das culturas: o hibridismo. Acresce ainda que uma parte significativa das culturas africanas sempre observaram os elementos culturais exógenos pela ótica da mais-valia, da eficácia simbólica e efetiva, estando livres da "pureza", da autenticidade, categorias próprias do pensamento judaico-cristão.
Parece-me que entrámos, definitivamente, na reprodução dos confrontos vigentes no Brasil, onde não há possibilidade para o bom-senso e o equilíbrio. Ou se está de um lado da barricada ou do outro. Isto está refletido neste debate em torno da estatuária, onde encontramos a glorificação absoluta dos símbolos pátrios, sem qualquer sentido crítico, apenas pela exaltação da memória nacionalista, e do outro lado a rejeição do direito aos símbolos nacionais, como se um país fosse somente uma sociedade emergida do contrato social, sem uma história e uma identidade.
Neste jogo de surdos, faz-se um julgamento da história a partir dos padrões coevos, como se cada época não tivesse o seu próprio contexto e à luz do qual é honesto avaliar as atitudes. Isto não significa, contudo, desculpabilizar as atrocidades da escravatura e do colonialismo, simplesmente porque o comércio de escravos era "normal", até porque não se aplica, felizmente, a mesma receia ao nazismo.
Posto isto, no caso da estátua do Pe. António Vieira parece-me evidente que a mesma invoca e glorifica uma figura com várias esquinas, que balanceou entre o humanismo e o salvacionismo colonialista. Acresce que a estátua comporta toda uma ideologia nacionalista do "bom colonizador", com os índios aos pés, agradecidos pelo homem que lhes "salvou a alma" da perdição "selvagem". Por isso, sim, enquanto património que reproduz uma ideologia ela é passível de crítica. No entanto, a vandalização da mesma não produz ganhos políticos. Mais simbólico seria cobri-las com um lençol branco, aludindo ao branqueamento do outro lado da história.
Concluindo, é devido o respeito ao direito aos símbolos nacionais, da mesma forma que é honesta uma consciência crítica da história, reconhecendo que do outro lado dos feitos marítimos houve a escravidão e destruição de culturas.