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Post{o} de Vigia

11.01.24

No âmbito das disputas pós-materiais, das disputas imateriais que versam nas sociedades ocidentais, existe um processo chamado de “descolonização da cultura e do conhecimento”. Ora, no caso português, ele é muito voltado aos manuais escolares, considerando que a memória histórica em Portugal detém ainda uma forte componente, uma forte carga, lusotropicalista, que enfatiza a narrativa do bom colonizador, do excecionalismo colonial português e que enfatiza, portanto, esse lado da expansão marítima como o grande feito nacional, prevalecendo uma narrativa que pesa negativamente sobre as populações que foram colonizadas e que foram objeto de ocupação. Ora, parece, evidentemente, uma reivindicação justa que, efetivamente, passaria por essa revisão da narrativa histórica, de modo a apresentar um discurso científico rigoroso que contextualize, que explique que houve efeitos negativos nos povos ocupados, nos povos colonizados, que efetivamente o escravo não pode continuar a ser apresentado nos manuais escolares de uma forma coisificada, ou seja, em que as pessoas cujos corpos foram escravizados, que foram comerciados para efeito de escravização, sejam tratados como parte de um vasto pacote de produtos comercializados como as especiarias. Efetivamente, é preciso humanizar essas pessoas que foram objeto de violência física, psicológica e simbólica, porque foram também expropriadas da sua cultura.

A noção de descolonização da cultura, pode, todavia, trazer um peso político-ideológico que tem afastado, em certa medida, partidos, movimentos, de pessoas mais do centro e centro-direita, as quais temem, naturalmente, que o próprio processo ou exercício de descolonização possa ser uma transformação dos manuais escolares de uma narrativa de epopeia muito própria do Estado Novo, mas que já vinha da Primeira República e também desde a Monarquia, portanto, um contínuo da narrativa heroica portuguesa, numa narrativa diametralmente oposta, de condenação sem contextualização.

Ora o que nós precisamos, de facto, é de uma contextualização crítica, de uma avaliação crítica dos manuais escolares, de uma abordagem crítica, rigorosa e científica, que seja capaz ao mesmo tempo de explicar os feitos científicos que estão associados à expansão marítima portuguesa e dar um contexto rigoroso nos efeitos negativos, da coisificação, da industrialização do processo de escravatura, da transformação de um processo de comércio de escravos que existia e que faz parte da história da humanidade e que era comum em África, numa produção industrial de escravos sem ímpar.

Portanto, precisamos de um olhar rigoroso, crítico e, talvez o próprio conceito de descolonização, devido ao peso ideológico que foi ganhando, possa não ser o termo mais adequado, demandando por uma terminologia talvez de um olhar crítico sobre os manuais, uma desconstrução crítica de narrativas heroicas de modo a apresentar os acontecimentos, os factos históricos, de uma forma rigorosa que efetivamente seja capaz de explicitar o vanguardismo do processo da ida para o mar e ao mesmo tempo que manifeste os efeitos negativos sentidos pelos povos ocupados, pela violência colonial, pelo desenraizamento cultural e identitário sofrido pelos povos africanos que foram escravizados.

11.12.23

Talvez não tenham notado, por não ter uma feição belicista, mas vivemos um período revolucionário, que lembra o famoso “debate” entre Thomas Paine e Edmund Burke, o qual convoca a questão de se saber se a mudança social deve ser repentina e de corte total com o passado, ou gradual, respeitando de onde viemos e o que foi construído. Por razões teórico-ideológicas, o tempo que vivemos é o da vitória do corte abrupto, da rutura em direção ao ex-novo. Há um admirável mundo novo a construir, que não é o “amanhã cantante” da sociedade igualitarista, sem classes, nem diferenças, mas é, fazendo uso de uma expressão de Fernando Pessoa, “outra coisa ainda”, que é a sociedade expurgada da mácula do passado. A história é, portanto, espaço de revisão, reescrita, reajustamento, purga. No novo mundo a construir só cabem os puros, não de imaculado coração, mas aqueles que foram vítimas da história, e aqueles que se derem como cordeiro sacrifical, purificados pela expiação dos pecados dos quais não escapam sem atos de contrição.

Isto a propósito da lei que entrará em vigor no Rio de Janeiro que pretende expurgar a cidade de quaisquer elementos materiais que homenagem pessoas que tenham um passado direto ou indireto ligado à escravatura, de entre eles o busto do Padre António Vieira oferecida pela Câmara Municipal de Lisboa, em 2011, e que se encontra na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

A figura do Padre António Vieira é uma figura controversa, não cabendo aqui realizar uma dissecação sobre a mesma. Vale dizer que se trata de uma personagem histórica de grande relevo intelectual e que, como qualquer intelectual do seu tempo, cheia de contradições. Grande defensor das comunidades indígenas brasileiras, António Vieira era um jesuíta progressista, alguém que procurou equilibrar as instituições do seu tempo com mudanças sociais humanistas. Se não é mentira que António Vieira pregou aos escravos a submissão e aceitação da sua condição, em especial nos sermões aos “pretos da Ethyopia”, não é menos verdade que as suas ideias progressistas sobre a dignidade dos povos indígenas e dos escravos, quando se confrontou com a crueldade de tratamento, valeram-lhe a condenação e prisão pela Inquisição e a perseguição até ao fim da vida. Falamos, evidentemente, de um progressismo de época, que em nome da igualdade racial e da dignidade humana, fazia uso da conversão ao cristianismo como instrumento de luta social.

Isto significa, portanto, que o Padre António Vieira é uma das figuras mais polémicas da história portuguesa, podendo ser objeto de diferentes leituras, conforme a benevolência ou o radicalismo que se pretenda imprimir ao olhar sobre a sua vida.

Felizmente, e ao arrepio do tempo, a solução encontrada para tais elementos topográficos, i.e., a sua transferência para um ambiente museológico, acompanhadas da devida contextualização sobre as obras e as personagens homenageadas, é de uma enorme sensatez. A solução permite (i) preservar património, (ii) que este seja visitável e compreendido através de um enquadramento, e (iii) que no futuro possa ser objeto de recuperação, se assim a sociedade do amanhã o entender. E isto é de uma sensatez extraordinária em face da vigência de uma crença social, política e teórica de que descobrimos a verdade final, o último evangelho da teoria social, que mais não tem feito que contribuir para a polarização social e para fomentar um puritanismo de rede social.

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