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Post{o} de Vigia

10.10.24

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O relativismo cultural é um tema que não pode ser tratado de modo polarizado, sob pena de deixar escapar as mais nucleares curvas da discussão. Em sobrevoo, o relativismo cultural é uma proposta pós-modernista que resulta do reconhecimento de que a colonização europeia do mundo deu origem a uma sensação de universalismo humano de forma abrangente, o que não corresponde à verdade, dado que a diversidade humana, embora possua verdadeiros universais culturais, tem matizes de tal ordem locais que impossibilitam a proposta de monismo cultural. Nesse sentido, o relativismo defende a necessidade de avaliar as culturas nos seus contextos e valores próprios. Esta ideia entra em choque com o primado liberal de que há valores que transcendem culturas e geografias, como os Direitos Humanos, direitos inerentes à dignidade que não podem ser desconsiderados em razão de localismos.

Essa questão ganha maior dimensão quando analisada nas nossas geografias ocidentais, ou seja, quando o relativismo cultural passa a ter de ser avaliado em razão de fluxos migratórios. Assim, o bom senso — categoria em desuso — diz-nos que os povos (i) devem ter o direito à sua memória e identidade étnica, cultural, religiosa, mesmo em contexto migratório; (ii) esses direitos não se sobrepõem ao ordenamento jurídico do país de chegada, que tem no topo os Direitos Humanos.

Ora, sucede que em razão da polarização e dos populismos de vária ordem, temos duas teses em confronto: a de que os migrantes devem abandonar as suas tradições por completo, adotando a cultura de chegada e remetendo as suas crenças religiosas para o âmago privado, e a de que qualquer alerta sobre choque cultural é uma cedência ao populismo de direita radical.

Esta polarização inquina o debate. Pior, inquina os processos de acolhimento dos migrantes; primeiro, porque os transforma em pessoas hipervigiadas, vistas como potenciais criminosos; segundo, porque, em sentido diverso, faz destes vítimas absolutas de um sistema capitalista hegemónico e opressor.

Porém, na realidade as coisas processam-se de formas muito mais complexas. Isto porque, de facto, os imigrantes são sujeitos a um sistema de exploração evidente, com sobrelotação habitacional e exploração laboral, seja por meio de serviços de transporte e entregas, como Glovo, Bolt e Uber Eats, o que fere a sua dignidade enquanto pessoas; e, ao mesmo tempo, não têm sido poucos os casos em que o relativismo cultural é posto em causa. Em Lisboa têm decorrido casos de assédio por parte de jovens motoristas da região do Indostão a passageiras; no Alentejo foram reportados casos de assédio por parte de trabalhadores agrícolas da mesma região a jovens e mulheres; e, em Benavente, foram denunciados casos de assédio a menores, entre os 9 e os 16 anos, no trajeto que liga o pavilhão da Casa do Povo, onde decorrem as aulas de Educação Física, e a Escola Duarte Lopes. Falamos, sempre, de pessoas do sexo masculino, entre os 20 e os 35 anos, que, estando sozinhos no país, oriundos de países onde os direitos das mulheres são comprimidos, agem de forma contrária à norma social e jurídica nacional.

Esta situação não pode ser considerada de forma polarizada nem populista, ou seja, não se deve olhar para os acontecimentos adotando o viés do “eles”, nem o da desculpabilização. A única forma de evitar estas situações é realizar uma integração coerente, continuada e plena, através de mecanismos públicos de introdução às normas sociais e jurídicas elementares, de aprendizado da língua, de envolvimento comunitário. Evidentemente que isso só pode ser feito com políticas migratórias bem desenhadas, o que não acontece.

→ artigo no Sapo sobre a matéria : https://www.sapo.pt/opiniao/artigos/a-imigracao-e-o-relativismo-cultural-entram-no-cafe-central

26.06.24

Costuma-se dizer que Portugal é um país acolhedor. Por Portugal entende-se os portugueses, a sociedade portuguesa. No entanto, ouvimos queixas de imigrantes sobre xenofobia e racismo, e tudo é questionado. Os mais conservadores recusam tais acontecimentos, duvidando da sua veracidade, enquanto os mais progressistas enfatizam que Portugal (a sociedade) é estruturalmente racista e xenófobo, sem diferença em relação a outros povos. Ora, a realidade parece contrariar ambas as posições. Por um lado, dados do European Social Survey mostram crenças racistas disseminadas na sociedade portuguesa; por outro, um inquérito aos afrodescendentes na Europa revela que Portugal é onde se sentem menos vítimas de discriminação.
O que sucede é uma confusão entre receber e acolher. Portugal é um país que sempre recebeu bem, devido à sua natureza transitória, amplamente ligada ao turismo, onde receber bem traduz-se em ganhos económicos. Ao mesmo tempo, graças ao Estado Novo, desenvolveu-se uma natureza servil na alma portuguesa. Contudo, receber não é acolher. Sabemos disso quando recebemos visitas em casa por alguns dias, ao invés de apenas algumas horas. Essa diferença aplica-se à sociedade. Portugal recebe bem, mas não acolhe tão bem. E, embora possamos afirmar que há uma hierarquização racial nesse processo, a questão fundamental é a distinção entre receber e acolher. Se é verdade que há uma preferência por europeus, também é verdade que existe uma rejeição, dado que fazem subir o preço dos imóveis, e um grupo de alemães alcoolizados pode ser menos agradável do que um grupo de bengaleses sossegados.

26.06.23

A ciência política tem mostrado como o pânico moral é um dos elementos mais importantes na construção de um campo político radical de direita no Ocidente. Partindo de estereótipos, preconceitos, notícias falsas e teorias da conspiração, tais movimentos têm observado enorme implementação no Ocidente, tendo na imigração o seu leitmotiv. Um exemplo paradigmático é o crescimento da AfD na Alemanha na sequência da chamada "crise dos refugiados", que correspondeu a uma instrumentalização de notícias falsas sobre violações e crimes em massa (que não ocorreram) para criar um pânico moral na sociedade alemã. Na era da pós-verdade não é necessário que existam factos, apenas basta que as crenças mais íntimas sobre o "outro" tenham respaldo em qualquer site, blog ou post em rede social. 

Em Portugal as "guerras culturais" e o pânico moral têm observado escassa penetração, mas é possível encontrar reflexos dessa questão, desde fenómenos de negacionismo à importação da "grande substituição". Este texto no blog Blasfémias é sintomático desse pânico moral. A forma simplificada e assente numa lógica dicotómica em torno da imigração é exemplar dessa importação de um discurso que levou ao Brexit e à eleição de Trump. Convenhamos que ao contrário do populismo que se baseia em interpretações simples para fenómenos complexos, a verdade é que a imigração para o Ocidente é um tema com várias esquinas, que impõe uma análise equilibrada e ponderada. Embora não aprecie o discurso nativista da direita identitária(1), que propaga a ideia de que a globalização colocou as identidades nacionais sob ameaça, não me parece nenhuma concessão ao globalismo reconhecer que uma imigração at large impõe desafios às sociedades de acolhimento, em primeiro lugar no plano cultural, porque o multiculturalismo tende a ser um fenómeno de uniformização, e em segundo lugar um desafio económico, já que grandes contingentes populacionais não são fáceis de integrar. Assim, enquanto é importante reconhecer os benefícios trazidos pela diversidade cultural (como processo de desconstrução de estereótipos, racismo e preconceitos) e o potencial de contribuição dos imigrantes para a sociedade, também devemos considerar cuidadosamente os desafios que podem surgir a curto e longo prazo. Sem uma abordagem adequada, os desafios de integração podem levar ao surgimento de guetos, exclusão social e segregação, o que pode gerar tensões e conflitos. Este fenómeno é evidente em cidades como Malmo, na Suécia, e em vários pontos de Paris, por exemplo. 

De igual modo, o controlo fronteiriço parece-me um caminho necessário, através da verificação de antecedentes criminais e de uma avaliação cuidadosa dos imigrantes, a fim de garantir a segurança de todos os cidadãos. A cooperação internacional também desempenha um papel importante na troca de informações e no combate a atividades criminosas transfronteiriças. 

Paralelamente, a imigração não deve ser pensada como um processo de solução única para as questões demográficas e da segurança social. Essa medida revela-se um "penso rápido" que acabará por não resolver o problema de fundo, uma vez que os imigrantes que hoje contribuem para a segurança social e para o saldo demográfico, dentro de pouco tempo serão, igualmente, dependentes do mesmo fundo social. É essencial criar um tecido educacional capaz de responder às demandas do mercado, ao mesmo tempo que se apoie os jovens a terem filhos. 

Em suma, se o texto no Blasfémias parte de um contexto de pânico moral, contendo estereótipos e extrapolações, a verdade é que a imigração é um desafio gigante nas sociedades ocidentais, e que os modelos adotados por governos neoliberais (baseados no mercado pelo mercado) ou governos de esquerda (assentes numa lógica de portas abertas e multiculturalismo exclusivamente benemérito) padecem de considerar o processo a longo-termo. Para salvar a segurança social no imediato estamos dispostos a hipotecar a identidade cultural abrangente (porque a sociedade não é unidimensional, como imagina a direita radical)? Estamos a considerar que os contribuintes para o fundo social serão no futuro beneficiários? A política de portas abertas sem controlo não será um problema para segurança num futuro imediato? 

Todas as respostas implicam uma avaliação criteriosa e prudente, evitando discursos de pânico moral e de euforia multiculturalista. 

(1) ver o livro Os Identitários de Zúquete.

Cólofon

Post{o} de Vigia é um blogue de João Ferreira Dias, escrito segundo o Acordo Ortográfico, de publicação avulsa e temática livre. | No ar desde 2013, inicialmente sob o título A Morada dos Dias Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.