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Post{o} de Vigia

16.04.21

Falar de algo como «sistémico» ou «estrutural» significa reconhecer que esse fenómeno se encontra enraizado na nossa sociedade e que por tal condiciona os comportamentos individuais e sobretudo coletivos, prejudicando determinados grupos em função de outros. Significa, igualmente, que essa circunstância é, na maioria dos casos, inconsciente e atua na vida das pessoas desprotegidas de forma direta e ainda antes do seu nascimento, porque a sociedade é feita de assimetrias e a desigualdade de condições de partida impede que o mérito esteja fora das narrativas mitológicas burguesas-elitistas. É por isso que este conceito está associado ao racismo, porque nas sociedades ocidentais, fruto de uma longa história colonial, científica, religiosa, económica (escravatura e políticas laborais) e escolar, as populações negras (mas não só) foram objeto de inferiorização, marginalização, exclusão, situação que se reproduziu até aos dias de hoje com uma baixa mobilidade social ascendente, sucesso escolar reduzido e precaridade laboral.

Aquilo que a cultura ocidental fez aos negros já o havia feito às mulheres: demonizou, inferiorizou e marginalizou. O imaginário religioso judaico-cristão foi, pois, determinante neste processo – da associação da mulher com a tentação e o pecado, por via de Eva, à impureza por via da menstruação, até à demonização na figura das bruxas como combate ao sagrado feminino e empoderamento das mulheres das culturas pré-cristãs. Com isto atravessámos toda a Idade Média, a Idade Moderna e chegámos à época contemporânea. O patriarcado judaico-cristão (simbolizado em Abraão, mas também na Santíssima Trindade masculina) gerou a subalternidade das mulheres. Da filosofia à religião, a exclusão das mulheres no Ocidente foi uma constante. Em termos concretos, a primeira vez que as mulheres votaram foi em 1893, na Nova Zelândia. Em Portugal, a primeira vez que uma mulher exerceu esse direito político foi em 1911, de seu nome Carolina Beatriz Ângelo, médica e viúva, que aproveitou uma brecha legal para, na condição de “chefe de família” (conceito preservado no ideal religioso-cultural abraâmico e político-jurídico romano) para exercer o voto. No entanto, a lei viria a restaurar a exclusão das mulheres, situação revertida, apenas, em 1931, durante o Estado Novo, mas com critérios de formação escolar e censitários. A universalização do voto só chegou às mulheres, em Portugal, em 1968. A figura do “chefe de família” que domina o nosso imaginário social (presente, inclusive, no direito civil por via do “bom pai de família” como paradigma de ética média) reforça a dinâmica enviesada entre homem e mulher, porque o chefe supõe a existência de uma figura subalterna, a “dona de casa”. Este modelo familiar colocou a mulher numa circunstância de dependência económica face ao homem, o que mesclado com um caldo cultural patriarcal e a proibição do divórcio para casamentos realizados na Igreja (a esmagadora maioria dos matrimónios contraídos durante o Estado Novo) nos termos da Concordata com a Igreja Católica em 1940, produziu um machismo sistémico materializado, de forma profunda, na violência doméstica normalizada.

Não é, pois, de estranhar que 67 por cento dos jovens portugueses considere “normal” a existência de violência no namoro, porque o machismo é uma condição cultural reproduzida permanentemente, de uma forma ou de outra, no imaginário coletivo, presente na vida das mulheres em matérias como a discrepância salarial, na culpabilização moral em caso de violação (“estava a pedi-las”), na condenação social pela independência sexual. A história do Ocidente é uma história feita pelos homens. Que sociedade teríamos, que evolução técnica, científica, etc., teríamos se tivesse havido, desde sempre, uma circunstância de igualdade de género? Uma sociedade que teme as mulheres é uma sociedade de homens fracos.

07.01.20

Vivemos um tempo em que se banalizou e instrumentalizou o conceito de «politicamente correto», associando-o a uma espécie de conspiração política, com origem na Esquerda, mas que teria contaminado o centro-esquerda e o centro-direita, a qual visa a destruição do modelo social em vigência. O problema é que esta narrativa nada mais é do que uma manipulação ideológica que articula memórias individuais e aspirações nostálgicas acerca de um passado idealizado.

Nesse quadro, um dos aspetos que essa narrativa sobre o politicamente correto ataca é o do feminismo, jamais o aceitando como uma ação política de um empoderamento feminino absolutamente necessário e concordante com a Agenda 2030 da ONU, mas antes como um movimento perigoso para o equilíbrio da sociedade, um ataque aos “bons costumes” e produto de uma histeria de mulheres feias que odeiam os homens, para lembrar as palavras da ministra brasileira da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.

Ora, é com este quadro ideológico que se embaça o problema da violência doméstica, do desequilíbrio entre homens e mulheres no mercado de trabalho e da violência sexual e simbólica. Os números da violência sobre as mulheres são gritantes. 2019 começou há dias e já onze mulheres foram assassinadas em decorrência de violência doméstica, em Portugal. Temos visto como os acórdãos do tribunal tendem a pesar de forma negativa e gravosa sobre as mulheres vítimas de violência doméstica e/ou sexual. Não basta um juiz suavemente punido para que o problema desapareça, é preciso que a leitura restrita da Lei como derivada do costume seja revista, pois se há coisa que as ciências sociais ensinam é que as sociedades são mutáveis e que os valores estão em permanente revisão, negociação e justaposição.

Nesse contexto, o fenómeno da violação é, por ventura, o mais gritante, expondo de forma particularmente evidente um caldo sociológico marcado pela tensão entre independência feminina e património cultural-religioso, onde a relação entre homens e mulheres ainda se encontra desequilibrada. Trata-se de uma ocorrência criminal na qual a vítima é socialmente culpabilizada. Nesses termos, as mulheres são menos filhas de Maria e mais de Medusa, divindade grega condenada a possuir cobras no lugar do cabelo depois de ter sido violada por Poseidon. Vemos como a mitologia acompanha as disposições sociais. Infelizmente, a herança cultural e religiosa pesa sobremaneira na forma como são percebidos os fenómenos sociais, como se concebe a moralidade social e a própria lei é interpretada. Em Portugal vivemos, ainda, com o espetro da moralidade do Estado Novo, debatendo-nos com as desigualdades entre homens e mulheres que ali foram solidificadas, glorificando a mulher do lar, dos afetos contidos, da autovigilância, sendo capaz de prever os ímpetos masculinos e os evitar. O argumento "pôs-se a jeito" é um recurso comum, inclusivamente utilizado por mulheres detentoras de um discurso machista no qual foram socializadas, para culpabilizar as vítimas de violação e assédio. O facto de uma mulher trabalhar na noite ou, simplesmente, de se vestir de forma mais sensualizada, é compreendido como um sinal de ausência de pudor e, assim, de provocação dos homens, os quais, em última análise, estão ilibados de responsabilidade porque se limitaram a responder a impulsos físicos. Neste horizonte, a liberdade permanece património masculino. Seja pela minissaia, seja porque subiu a quarto, ou porque disse “não quando queria dizer sim”, ou, tão simplesmente porque estava inconsciente pelo que não ofereceu resistência, a mulher violada é sempre socialmente culpabilizada pela sua própria condição de vítima. Mais, essa mesma condição é-lhe negada, restando-lhe a posição eterna da mulher passível de ser apedrejada publicamente ou condenada a ter cobras na cabeça para a eternidade.

Enquanto não tivermos uma sociedade que produza o corte com o património moral judaico-cristão, e dotada de verdadeiras políticas de empoderamento feminino, capacitando as mulheres para encontrarem, pelos seus próprios meios, a sua independência e sustentabilidade económica, retirando-as, definitivamente, de situações de subalternidade familiar, doméstica, social e profissional, continuaremos a condenar Medusa à eternidade das serpentes.

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