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Anatomia da Palavra

O beijo e o exibicionismo moral

Agosto 31, 2023

O caso Rubiales tem sido explorado até à exaustão, explicitando um cruzamento entre machismo tóxico e exibição moral. Rubiales esteve muito mal, sobre isso não há a menor dúvida, manifestando uma cultura de impunidade e toxicidade masculina próprias de uma sociedade patriarcal. Por outro lado, o caso terá sido explorado ostensivamente pela imprensa, sobretudo por arrasto de um exibicionismo moral levado a cabo por puritanistas de uma nova ordem, alimentados pelo ego da exibição em praça pública.

FALEMOS DE MACHISMO SISTÉMICO

Abril 17, 2021

Falar de algo como «sistémico» ou «estrutural» significa reconhecer que esse fenómeno se encontra enraizado na nossa sociedade e que por tal condiciona os comportamentos individuais e sobretudo coletivos, prejudicando determinados grupos em função de outros. Significa, igualmente, que essa circunstância é, na maioria dos casos, inconsciente e atua na vida das pessoas desprotegidas de forma direta e ainda antes do seu nascimento, porque a sociedade é feita de assimetrias e a desigualdade de condições de partida impede que o mérito esteja fora das narrativas mitológicas burguesas-elitistas. É por isso que este conceito está associado ao racismo, porque nas sociedades ocidentais, fruto de uma longa história colonial, científica, religiosa, económica (escravatura e políticas laborais) e escolar, as populações negras (mas não só) foram objeto de inferiorização, marginalização, exclusão, situação que se reproduziu até aos dias de hoje com uma baixa mobilidade social ascendente, sucesso escolar reduzido e precaridade laboral.

Aquilo que a cultura ocidental fez aos negros já o havia feito às mulheres: demonizou, inferiorizou e marginalizou. O imaginário religioso judaico-cristão foi, pois, determinante neste processo – da associação da mulher com a tentação e o pecado, por via de Eva, à impureza por via da menstruação, até à demonização na figura das bruxas como combate ao sagrado feminino e empoderamento das mulheres das culturas pré-cristãs. Com isto atravessámos toda a Idade Média, a Idade Moderna e chegámos à época contemporânea. O patriarcado judaico-cristão (simbolizado em Abraão, mas também na Santíssima Trindade masculina) gerou a subalternidade das mulheres. Da filosofia à religião, a exclusão das mulheres no Ocidente foi uma constante. Em termos concretos, a primeira vez que as mulheres votaram foi em 1893, na Nova Zelândia. Em Portugal, a primeira vez que uma mulher exerceu esse direito político foi em 1911, de seu nome Carolina Beatriz Ângelo, médica e viúva, que aproveitou uma brecha legal para, na condição de “chefe de família” (conceito preservado no ideal religioso-cultural abraâmico e político-jurídico romano) para exercer o voto. No entanto, a lei viria a restaurar a exclusão das mulheres, situação revertida, apenas, em 1931, durante o Estado Novo, mas com critérios de formação escolar e censitários. A universalização do voto só chegou às mulheres, em Portugal, em 1968. A figura do “chefe de família” que domina o nosso imaginário social (presente, inclusive, no direito civil por via do “bom pai de família” como paradigma de ética média) reforça a dinâmica enviesada entre homem e mulher, porque o chefe supõe a existência de uma figura subalterna, a “dona de casa”. Este modelo familiar colocou a mulher numa circunstância de dependência económica face ao homem, o que mesclado com um caldo cultural patriarcal e a proibição do divórcio para casamentos realizados na Igreja (a esmagadora maioria dos matrimónios contraídos durante o Estado Novo) nos termos da Concordata com a Igreja Católica em 1940, produziu um machismo sistémico materializado, de forma profunda, na violência doméstica normalizada.

Não é, pois, de estranhar que 67 por cento dos jovens portugueses considere “normal” a existência de violência no namoro, porque o machismo é uma condição cultural reproduzida permanentemente, de uma forma ou de outra, no imaginário coletivo, presente na vida das mulheres em matérias como a discrepância salarial, na culpabilização moral em caso de violação (“estava a pedi-las”), na condenação social pela independência sexual. A história do Ocidente é uma história feita pelos homens. Que sociedade teríamos, que evolução técnica, científica, etc., teríamos se tivesse havido, desde sempre, uma circunstância de igualdade de género? Uma sociedade que teme as mulheres é uma sociedade de homens fracos.

AS ESQUINAS DO CASO RONALDO

Outubro 04, 2018

O caso Ronaldo, a alegada violação que teria praticado sobre Kathryn Mayorga, cidadã norte-americana, em 2009, na cidade de Las Vegas, é uma excelente oportunidade para se refletir sobre os contornos sociológicos do papel de género e dos efeitos bipolarizados do fenómeno da violação. O apuramento dos factos e o desenrolar do processo judicial serão objeto de exploração sensacionalista por parte dos órgãos de comunicação. O que se espera é que não surta nefasto efeito na clarificação dos acontecimentos e na dedução da verdade. O caso não é evidente. A acusação é séria demais para que as opiniões se baseiem em simpatias. De um modo geral encontramos, neste caso, duas esquinas opostas, nesta fase em que opinar é, ainda, possível, à falta de provas irrefutáveis. De um lado, os que defendendo Cristiano Ronaldo alegarão que Kathryn Mayorga é uma oportunista em busca de protagonismo e dinheiro fácil, e que as imagens da noite revelam intimidade entre ambos, e que a profissão da jovem não era a da mais pura moralidade. Do lado oposto, encontramos o importante movimento #MeToo que incentivou mulheres vítimas de violação e de assédio sexual a denunciarem os casos, revelando, por exemplo, uma Hollywood machista, onde a cultura da coisificação sexual da mulher é aterradora. Nesse sentido, a denúncia face a CR7 seria um vital capítulo no combate à impunidade dos "intocáveis" das nossas sociedades.

Ora, o problema é que vivemos, hoje, numa sociedade bipolarizada no fenómeno da violação. À medida em que os casos vão sendo tornados públicos, quer envolvendo personalidades públicas, quer da esfera do anonimato social, encontramos um caldo sociológico contendo uma cultura da violação como parte do património desequilibrado das relações entre homens e mulheres.O fenómeno evidencia um histórico social de tensões de poder. O argumento "pôs-se a jeito" é um recurso comum, inclusivamente utilizado por mulheres detentoras de um discurso machista no qual foram socializados, para culpabilizar as vítimas de violação e assédio. O facto de uma mulher trabalhar na noite ou, simplesmente, de se vestir de forma mais sensualizada, é compreendida como um sinal de ausência de pudor e, assim, de provocadora dos homens, os quais, em última análise, estão ilibados de responsabilidade porque se limitaram a responder a impulsos. Em Portugal temos visto como os acórdãos do tribunal do Porto, mas não apenas, pendem negativamente sobre as vítimas, num fenómeno que expõe a moral católica do Estado Novo em evidência. Este contexto é agravado pela detenção de poder económico, social e simbólico por parte de homens, que no exercício das suas funções extrapolam os limites num contexto favorável à impunidade.

A bipolarização é particularmente evidente nos EUA, onde os fenómenos sociais tendem a ser extremados. Como contraponto à cultura de violação e impunidade tem surgido -- com efeitos sociais muito menores, por enquanto -- uma cultura de medo por parte dos homens, que começam a recear abordar as mulheres sob pena de daí advirem efeitos legais, tornando cada vez mais recorrente a abordagem através de apps destinadas aos encontros amorosos. Com efeito, é muito provável que nos próximos anos, figuras públicas optem por, antes do ato sexual, pedir às parceiras que assinem um termo de consentimento, evitando eventuais casos de burla posterior. Esta situação não é de menor importância, porque quando extremados os lados o meio da razoabilidade fica vazio. O falta é, portanto, uma maturidade ética à sociedade capaz de se despir de quadros morais conservadores e religiosos sobre o papel da mulher e do homem, garantindo a dignidade e a equidade às primeiras, de modo a que a cultura da impunidade, do assédio e da violação não conduzam a encerrar das mulheres em muros de prevenção, cujos efeitos na interação social saudável sejam irrevercíveis.

DIA DA MULHER, SEMPRE URGENTE

Março 08, 2018

Somos, muitas vezes, convidados ao facilitismo de ver o Dia Internacional da Mulher como uma data cuja comemoração não se justifica numa sociedade ocidental em que as mulheres têm acesso ao mercado de trabalho, à educação, a espaços de lazer, e que até são privilegiadas em bares e discotecas. Esse facilitismo não passa de uma leitura superficial da realidade, um olhar que se horizonta a oriente, onde os direitos elementares das mulheres permanecem restringidos a partir de leituras conservadoras dos postulados religiosos. Contudo, não nos regozijemos por uma separação entre religião e sociedade. Tal não existe. O elevado número de violações e o assédio sexual, resultam de uma atitude social que faz da mulher um objeto social. O citado privilégio em bares e discotecas é, claramente, um sinónimo disso, porque essa prioridade não se baseia numa paridade, mas antes na ideia da mulher enquanto produto de mercado, enquanto objeto de predação sexual. Essa ideia encontra-se reproduzida no desempenho de papéis sexualizados no cinema, em que a percentagem de nu feminino é esmagadoramente superior ao masculino.

Retomando o assédio e o ataque sexual, a crença social de que mulheres arrojadamente trajadas constitui um sinal de disponibilidade permanente para o sexo, um sinal de ausência de decoro e pudor, é produto de uma sociedade em que a religião ainda está presente, ainda impregna a moralidade social. Uma mulher de minissaia “está a pedi-las”. Isto porque o ideal feminino continua a residir, para citar o malfado presidente Temer, o da “mulher recatada e o do lar”, estereótipo mergulhado na figura católica de Maria, mãe de Jesus (1).

Portanto, todo este caldo sociológico produz uma disparidade entre homens e mulheres que se traduz em violência sexual, física e simbólica, em que violência doméstica, em violência salarial e de ascensão profissional. Por regra as mulheres recebem salários menores e ocupam lugares inferiores. Há uma mudança em curso, mas esta é pautada caso a caso. Por isso o feminismo continua tão necessário. Não o feminismo de muitas bloggers portuguesas que, na sua ignorância, confundem empoderamento feminino com violência simbólica da figura masculina, mas antes o feminismo politicamente ativo, o que demanda por igualdade salarial, igualdade de oportunidades, por direito à minissaia dessexualizada. É preciso queimar soutiens sociais.

 

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(1) sobre as transformações do sagrado feminino ler A prostituta sagrada - A face eterna do Feminino, de Nancy Qualls- Corbett.

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Anatomia da Palavra é um blogue de João Ferreira Dias, escrito segundo o Acordo Ortográfico, de publicação avulsa e temática livre. | No ar desde 2013, inicialmente sob o título A Morada dos Dias Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

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Informação

João Ferreira Dias é Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, no Grupo Instituições, Governação e Relações Internacionais. Interessado por Direitos Fundamentais, Teoria Política e do Estado, Direito Constitucional, e Antropologia Religiosa.