Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Post{o} de Vigia

11.01.24

 

Anielle Franco, ministra brasileira da Igualdade Racial, e irmã de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada por (ao que tudo indica) forças bolsonaristas, é, tal como a sua irmã foi, uma importante ativista antirracista, com uma trajetória académica significativa na área, nomeadamente na North Carolina Central University e na Florida A&M University, instituições historicamente ligadas ao pensamento negro.

O pensamento e a ação de Anielle Franco são marcados por uma tradição teórica rica conhecida por Teoria Crítica, concretamente a Teoria Crítica da Raça, na esteira da qual se desenvolve noções como “racismo estrutural”, “opressão racial” e “intersecionalidade”, categorias que permitem uma compreensão e ação sobre as dinâmicas racializadoras das sociedades humanas, em particular nas sociedades de passado colonial e esclavagista, nomeadamente os Estados Unidos da América, onde o racismo deteve e detém uma força normativa profunda, sendo ao mesmo tempo estrutural, sistémico, institucional e legal. Basta lembrar as leis Jim Crow e o impacto atual das mesmas. No entanto, devido aos trânsitos entre a Universidade e os movimentos sociais, a Teoria Crítica foi adquirindo uma dimensão politizada, já que ela se propõe a ser um instrumento de transformação social, o que faz com que as categorias deixem de ser instrumentos de análise e passem a ser pressupostos ideológicos.

Devido às mudanças nas sociedades ocidentais, em particular no eixo norte-ocidental, as batalhas dos movimentos sociais passaram a focar-se, sobretudo, em questões pós-materiais, tendendo a desligar essas questões de questões materiais como pobreza. A leitura é, evidentemente, de inspiração marxista (pensamento que, de resto, está na base da Teoria Crítica), considerando que é preciso mudar a superestrutura, concretamente a cultura, para que ela mude a estrutura social de base. É nessa esteira que vamos encontrar uma hiperatenção à linguagem e ao pensamento, que levam a uma crença de que a sociedade muda por decreto e por policiamento público (cuja manifestação é o cancelamento nas redes sociais). É por isso que a pensadora negra @pretaderodinhas vem salientando as incongruências do ativismo de Anielle Franco e a sua equipa. Em setembro, Marcelle Decothé, assessora de Anielle Franco criticou a “torcida” do São Paulo, através das palavras “Torcida branca, que não canta, descendente de europeu safade... Pior tudo de pauliste”, escreveu. No dia de ontem, a ministra afirmou que o termo “buraco negro”, o qual define uma região no espaço com campo gravitacional tão intenso que também absorve a luz, é “racista”.

O racismo é, inegavelmente, um problema endémico das nossas sociedades, que precisa ser combatido. É preciso uma política intransigente de reversão de lógicas enraizadas de segregação. Tenho as maiores dúvidas que esta dinâmica de inspiração marxista, que produz uma dicotomia racial estanque e absoluta, numa versão reciclada da “luta de classes”, que passa por uma ação sobre a linguagem, uma desconsideração contextual e por uma dinâmica de purificação social do dissenso – em que não basta ser antirracista, é preciso que se o seja de uma determinada maneira, que exclui inclusive ativistas negros desalinhados com um conjunto de dogmas – seja o caminho. De resto, já dizia McWhorter que esta lógica capturou as populações negras e lhes é prejudicial. Em nome da liberdade e da justiça social, aceito visões contrárias e que até possa estar enganado.

11.12.23

Talvez não tenham notado, por não ter uma feição belicista, mas vivemos um período revolucionário, que lembra o famoso “debate” entre Thomas Paine e Edmund Burke, o qual convoca a questão de se saber se a mudança social deve ser repentina e de corte total com o passado, ou gradual, respeitando de onde viemos e o que foi construído. Por razões teórico-ideológicas, o tempo que vivemos é o da vitória do corte abrupto, da rutura em direção ao ex-novo. Há um admirável mundo novo a construir, que não é o “amanhã cantante” da sociedade igualitarista, sem classes, nem diferenças, mas é, fazendo uso de uma expressão de Fernando Pessoa, “outra coisa ainda”, que é a sociedade expurgada da mácula do passado. A história é, portanto, espaço de revisão, reescrita, reajustamento, purga. No novo mundo a construir só cabem os puros, não de imaculado coração, mas aqueles que foram vítimas da história, e aqueles que se derem como cordeiro sacrifical, purificados pela expiação dos pecados dos quais não escapam sem atos de contrição.

Isto a propósito da lei que entrará em vigor no Rio de Janeiro que pretende expurgar a cidade de quaisquer elementos materiais que homenagem pessoas que tenham um passado direto ou indireto ligado à escravatura, de entre eles o busto do Padre António Vieira oferecida pela Câmara Municipal de Lisboa, em 2011, e que se encontra na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

A figura do Padre António Vieira é uma figura controversa, não cabendo aqui realizar uma dissecação sobre a mesma. Vale dizer que se trata de uma personagem histórica de grande relevo intelectual e que, como qualquer intelectual do seu tempo, cheia de contradições. Grande defensor das comunidades indígenas brasileiras, António Vieira era um jesuíta progressista, alguém que procurou equilibrar as instituições do seu tempo com mudanças sociais humanistas. Se não é mentira que António Vieira pregou aos escravos a submissão e aceitação da sua condição, em especial nos sermões aos “pretos da Ethyopia”, não é menos verdade que as suas ideias progressistas sobre a dignidade dos povos indígenas e dos escravos, quando se confrontou com a crueldade de tratamento, valeram-lhe a condenação e prisão pela Inquisição e a perseguição até ao fim da vida. Falamos, evidentemente, de um progressismo de época, que em nome da igualdade racial e da dignidade humana, fazia uso da conversão ao cristianismo como instrumento de luta social.

Isto significa, portanto, que o Padre António Vieira é uma das figuras mais polémicas da história portuguesa, podendo ser objeto de diferentes leituras, conforme a benevolência ou o radicalismo que se pretenda imprimir ao olhar sobre a sua vida.

Felizmente, e ao arrepio do tempo, a solução encontrada para tais elementos topográficos, i.e., a sua transferência para um ambiente museológico, acompanhadas da devida contextualização sobre as obras e as personagens homenageadas, é de uma enorme sensatez. A solução permite (i) preservar património, (ii) que este seja visitável e compreendido através de um enquadramento, e (iii) que no futuro possa ser objeto de recuperação, se assim a sociedade do amanhã o entender. E isto é de uma sensatez extraordinária em face da vigência de uma crença social, política e teórica de que descobrimos a verdade final, o último evangelho da teoria social, que mais não tem feito que contribuir para a polarização social e para fomentar um puritanismo de rede social.

Cólofon

Post{o} de Vigia é um blogue de João Ferreira Dias, escrito segundo o Acordo Ortográfico, de publicação avulsa e temática livre. | No ar desde 2013, inicialmente sob o título A Morada dos Dias Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.