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Post{o} de Vigia

21.10.24

O jogador alemão, Kevin Behrens, foi afastado do plantel do Wolfsburg por se recusar a assinar uma camisola dos lobos feita para uma ação beneficente com as cores do arco-íris, tendo afirmado, “Não vou assinar essa merd@ gay”. As opiniões dividem-se nesta matéria, colocando em conflito duas dimensões: o direito à objeção de consciência e a decisão do clube de adotar medidas de justiça social. No entanto, a questão só surge porque houve publicidade da rejeição do jogador, fazendo do assunto matéria pública.

A exposição pública das suas palavras desencadeou uma tempestade de reações por parte da opinião pública, que pressionou o clube a agir de maneira célere. Esse tipo de situação revela a tensão entre a liberdade individual dos jogadores e as expectativas crescentes de que atletas e instituições desportivas adotem uma postura clara em questões sociais. O Wolfsburg, ao optar pelo afastamento de Behrens, pareceu querer enviar uma mensagem de que atitudes ou falas consideradas ofensivas ou contrárias aos valores de inclusão não seriam toleradas, mesmo que oriundas de convicções pessoais.

No entanto, o que é particularmente relevante neste caso é o facto de que, se Behrens tivesse simplesmente recusado a assinar a camisola sem fazer um comentário explícito ou ofensivo, o desenrolar dos eventos poderia ter sido muito diferente. Isso levanta a questão de saber até que ponto os jogadores são responsáveis pelas suas palavras em ambientes que, em princípio, deveriam ser privados, e como a divulgação dessas palavras afeta suas carreiras.

A questão da objeção de consciência — o direito de recusar-se a realizar certos atos com base em crenças pessoais ou religiosas — é amplamente reconhecida em muitas áreas, mas no mundo do desporto, e particularmente em organizações que promovem valores como diversidade e inclusão, há um equilíbrio delicado a ser mantido. Behrens, ao expressar as suas convicções naqueles termos, transformou um ato de recusa pessoal em uma controvérsia com implicações mais amplas. Ou seja, tornou o assunto num assunto político.

Ao tornar-se público, o incidente transcende o âmbito de um conflito entre clube e jogador, e torna-se um campo de batalha para debates sociais mais amplos. Os defensores de Behrens alegam que este está a ser cancelado, com a sua liberdade de expressão a ser cerceada, por causa do avanço do "wokismo". Já os críticos, por outro lado, advogam a necessidade de que figuras públicas, especialmente atletas de clubes grandes, sejam responsáveis pela imagem que projetam e pelas mensagens que transmitem, particularmente em temas sensíveis como a inclusão da comunidade LGBTQIA+. 

Esse episódio também ressalta a necessidade de políticas claras dentro dos clubes sobre como lidar com questões de objeção de consciência e como garantir que divergências sejam resolvidas sem que se transformem em crises públicas. 

10.10.24

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O relativismo cultural é um tema que não pode ser tratado de modo polarizado, sob pena de deixar escapar as mais nucleares curvas da discussão. Em sobrevoo, o relativismo cultural é uma proposta pós-modernista que resulta do reconhecimento de que a colonização europeia do mundo deu origem a uma sensação de universalismo humano de forma abrangente, o que não corresponde à verdade, dado que a diversidade humana, embora possua verdadeiros universais culturais, tem matizes de tal ordem locais que impossibilitam a proposta de monismo cultural. Nesse sentido, o relativismo defende a necessidade de avaliar as culturas nos seus contextos e valores próprios. Esta ideia entra em choque com o primado liberal de que há valores que transcendem culturas e geografias, como os Direitos Humanos, direitos inerentes à dignidade que não podem ser desconsiderados em razão de localismos.

Essa questão ganha maior dimensão quando analisada nas nossas geografias ocidentais, ou seja, quando o relativismo cultural passa a ter de ser avaliado em razão de fluxos migratórios. Assim, o bom senso — categoria em desuso — diz-nos que os povos (i) devem ter o direito à sua memória e identidade étnica, cultural, religiosa, mesmo em contexto migratório; (ii) esses direitos não se sobrepõem ao ordenamento jurídico do país de chegada, que tem no topo os Direitos Humanos.

Ora, sucede que em razão da polarização e dos populismos de vária ordem, temos duas teses em confronto: a de que os migrantes devem abandonar as suas tradições por completo, adotando a cultura de chegada e remetendo as suas crenças religiosas para o âmago privado, e a de que qualquer alerta sobre choque cultural é uma cedência ao populismo de direita radical.

Esta polarização inquina o debate. Pior, inquina os processos de acolhimento dos migrantes; primeiro, porque os transforma em pessoas hipervigiadas, vistas como potenciais criminosos; segundo, porque, em sentido diverso, faz destes vítimas absolutas de um sistema capitalista hegemónico e opressor.

Porém, na realidade as coisas processam-se de formas muito mais complexas. Isto porque, de facto, os imigrantes são sujeitos a um sistema de exploração evidente, com sobrelotação habitacional e exploração laboral, seja por meio de serviços de transporte e entregas, como Glovo, Bolt e Uber Eats, o que fere a sua dignidade enquanto pessoas; e, ao mesmo tempo, não têm sido poucos os casos em que o relativismo cultural é posto em causa. Em Lisboa têm decorrido casos de assédio por parte de jovens motoristas da região do Indostão a passageiras; no Alentejo foram reportados casos de assédio por parte de trabalhadores agrícolas da mesma região a jovens e mulheres; e, em Benavente, foram denunciados casos de assédio a menores, entre os 9 e os 16 anos, no trajeto que liga o pavilhão da Casa do Povo, onde decorrem as aulas de Educação Física, e a Escola Duarte Lopes. Falamos, sempre, de pessoas do sexo masculino, entre os 20 e os 35 anos, que, estando sozinhos no país, oriundos de países onde os direitos das mulheres são comprimidos, agem de forma contrária à norma social e jurídica nacional.

Esta situação não pode ser considerada de forma polarizada nem populista, ou seja, não se deve olhar para os acontecimentos adotando o viés do “eles”, nem o da desculpabilização. A única forma de evitar estas situações é realizar uma integração coerente, continuada e plena, através de mecanismos públicos de introdução às normas sociais e jurídicas elementares, de aprendizado da língua, de envolvimento comunitário. Evidentemente que isso só pode ser feito com políticas migratórias bem desenhadas, o que não acontece.

→ artigo no Sapo sobre a matéria : https://www.sapo.pt/opiniao/artigos/a-imigracao-e-o-relativismo-cultural-entram-no-cafe-central

03.10.24

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Algumas pessoas referem que não tenho uma palavra sobre a situação em Israel e Palestina. Não sendo totalmente verdade, cumpre-me, em todo o caso, referir, face aos últimos acontecimentos, que: (i) considero a solução de dois Estados a única viável; (ii) que Benjamin Netanyahu é um radical, populista, oportunista e criminoso que para garantir a sua intocabilidade não se coíbe de escalar a guerra e dizimar populações, com um impacto dramático sobre as condições de vida na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, como o bloqueio, a falta de recursos básicos (água, eletricidade, medicamentos); (iii) que o mesmo é alimentado por setores radicais dentro de Israel que desejam um imperialismo regional; (iv) que embora técnico-juridicamente não seja seguro podermos falar em «genocídio», há, efetivamente, um massacre de populações; (v) que a situação se presta a uma polarização ideológica que não favorece a paz, entre os alinhados em absoluto com Israel, por razões de familiaridade cultural, e os contrahegemónicos pró-Palestina que observam o mundo num binómio opressor-oprimido, o que molda as narrativas e os apoios políticos ao redor do mundo, tanto na opinião pública quanto entre os governos; (vi) que a expansão de Israel tem violado sistematicamente as resoluções das Nações Unidas, sob o manto protetor dos Estados Unidos, (vii) o papel crucial do Hamas e outros grupos palestinianos que, apesar de serem vistos por alguns como forças de resistência, numa euforia heroica contrahegemónica, são também responsáveis por ataques contra civis israelitas e pela perpetuação da violência.

12.10.21

No meio académico tornou-se mais ou menos consensual que o processo de emergência da Nova Direita (muito mais saliente do que na Nova Esquerda) populista e radical (não raras vezes de extrema-direita reconfigurada) ancora-se em fatores economicistas e sociológicos, nomeadamente as crises económicas, as crises dos refugiados e a doutrina de que a globalização, com o seu fluxo permanente de povos migrantes, era acolhida pelas populações mais vulneráveis e mais idosas como um desestabilizador dos recursos e um desagregador da unidade cultural do país. Víamos os discursos populistas como arreigados a uma lógica emergente antissistémica, antielitista, e afirmada numa clássica dicotomia “nós” contra “eles”, geralmente traduzida na tensão entre cidadãos de bem (nas versões anglo-saxónicas ou we, the people) contra os corruptores da sociedade, sejam eles uma elite intelectual esquerdista, sejam os imigrantes como usurpadores dos empregos e serviços sociais. Este descontentamento generalizado foi capitalizado nas eleições norte-americanas com a eleição de Donald Trump, no Reino Unido com o Brexit, no Brasil com a eleição de Bolsonaro, na Polónia e Hungria com a eleição de governos de extrema-direita, entre dezenas de outros factos políticos ocorridos no último punhado de anos.Mas esse consenso científico, que permitia analogias com os eventos ligados à emergência do fascismo há um século, vem agora ser colocado em causa com as denúncias de Frances Haugen. A ex-funcionária do Facebook dá-nos conta que o algoritmo que determina os postscom maior incidência no feed de cada utilizador está desenhado para promover a polarização, o conflito, as teorias de conspiração e os negacionismos (de que a pandemia foi o novo ouro). Compreendemos que o consenso, a ordem, o diálogo, a paz, não tendo um potencial de gerar tráfego (logo gerar lucro) são menos interessantes para a “política editorial” do Facebook. Assim, segundo a denunciante, Mark Zuckerberg e a sua equipa estão apostados na promoção da desordem, do combate político, da polarização política e social, sem qualquer preocupação ética, numa lógica de “quanto pior, melhor”, pois quanto mais entrincheirada estiver a sociedade mais incentivada estará na partilha e nos “gostos”.O que está subjacente a esta lógica algorítmica faz de Zuckerberg a pessoa mais poderosa e perigosa do mundo. Os partidos e movimentos políticos de natureza radical, que precisam de polarização são, portanto, tanto produto deste algoritmo quanto dependentes dele, porque precisam de continuo engajamento público, alimentando o Facebook de posts agressivos, polarizadores, fake news, e afins, o qual, por sua vez, encontra nestes um recurso de mercado para gerar tráfego e lucro.Somos, assim, confrontados com uma realidade que ultrapassa os dados com os quais se operou na análise das mudanças sociais e políticas recentes, em que os indivíduos são parte de uma engrenagem fabricada para os radicalizar. Zuckerberg oficializou o mundo orwelliano, em que a verdade é apenas uma narrativa com mais partilhas e gostos.

Cólofon

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