O que mais me preocupa na eventual candidatura de Gouveia e Melo e na sondagem que o dá como um dos preferidos dos portugueses, é que podemos estar diante de um exemplo de populismo militar de estilo "caudilho" que tivemos na América Latina e em boa parte do século XX em Portugal. Sem lhe conhecermos quaisquer ideias para o país, sobre a sociedade, valores e princípios, ficamos com a performance do homem de farda que vai dizendo umas coisas soltas, algumas de baixo nexo. Ora, num tempo em que a nostalgia dos autoritarismo faz o seu percurso, é muito preocupante neste sentimento nacional. Marcelo Rebelo de Sousa (a tomar por boa a informação do Expresso) tem razões para estar preocupado.
Anielle Franco, ministra brasileira da Igualdade Racial, e irmã de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada por (ao que tudo indica) forças bolsonaristas, é, tal como a sua irmã foi, uma importante ativista antirracista, com uma trajetória académica significativa na área, nomeadamente na North Carolina Central University e na Florida A&M University, instituições historicamente ligadas ao pensamento negro.
O pensamento e a ação de Anielle Franco são marcados por uma tradição teórica rica conhecida por Teoria Crítica, concretamente a Teoria Crítica da Raça, na esteira da qual se desenvolve noções como “racismo estrutural”, “opressão racial” e “intersecionalidade”, categorias que permitem uma compreensão e ação sobre as dinâmicas racializadoras das sociedades humanas, em particular nas sociedades de passado colonial e esclavagista, nomeadamente os Estados Unidos da América, onde o racismo deteve e detém uma força normativa profunda, sendo ao mesmo tempo estrutural, sistémico, institucional e legal. Basta lembrar as leis Jim Crow e o impacto atual das mesmas. No entanto, devido aos trânsitos entre a Universidade e os movimentos sociais, a Teoria Crítica foi adquirindo uma dimensão politizada, já que ela se propõe a ser um instrumento de transformação social, o que faz com que as categorias deixem de ser instrumentos de análise e passem a ser pressupostos ideológicos.
Devido às mudanças nas sociedades ocidentais, em particular no eixo norte-ocidental, as batalhas dos movimentos sociais passaram a focar-se, sobretudo, em questões pós-materiais, tendendo a desligar essas questões de questões materiais como pobreza. A leitura é, evidentemente, de inspiração marxista (pensamento que, de resto, está na base da Teoria Crítica), considerando que é preciso mudar a superestrutura, concretamente a cultura, para que ela mude a estrutura social de base. É nessa esteira que vamos encontrar uma hiperatenção à linguagem e ao pensamento, que levam a uma crença de que a sociedade muda por decreto e por policiamento público (cuja manifestação é o cancelamento nas redes sociais). É por isso que a pensadora negra @pretaderodinhas vem salientando as incongruências do ativismo de Anielle Franco e a sua equipa. Em setembro, Marcelle Decothé, assessora de Anielle Franco criticou a “torcida” do São Paulo, através das palavras “Torcida branca, que não canta, descendente de europeu safade... Pior tudo de pauliste”, escreveu. No dia de ontem, a ministra afirmou que o termo “buraco negro”, o qual define uma região no espaço com campo gravitacional tão intenso que também absorve a luz, é “racista”.
O racismo é, inegavelmente, um problema endémico das nossas sociedades, que precisa ser combatido. É preciso uma política intransigente de reversão de lógicas enraizadas de segregação. Tenho as maiores dúvidas que esta dinâmica de inspiração marxista, que produz uma dicotomia racial estanque e absoluta, numa versão reciclada da “luta de classes”, que passa por uma ação sobre a linguagem, uma desconsideração contextual e por uma dinâmica de purificação social do dissenso – em que não basta ser antirracista, é preciso que se o seja de uma determinada maneira, que exclui inclusive ativistas negros desalinhados com um conjunto de dogmas – seja o caminho. De resto, já dizia McWhorter que esta lógica capturou as populações negras e lhes é prejudicial. Em nome da liberdade e da justiça social, aceito visões contrárias e que até possa estar enganado.
Mais importante do que a vitória de Geert Wilders e do seu partido nas eleições nos Países Baixos, é o significado global que está associado a estes resultados, quanto mais não seja porque formar governo será uma tarefa extremamente difícil. Desse modo, o mais significativo é o sintoma que está associado à eleição e ao voto no Partij voor de Vrijheid, conhecido pela sigla PVV. Trata-se de um partido-padrão da nova direita radical populista, congregando uma agenda económica liberal ou ultraliberal com valores morais e sociais conservadores. O seu eleitorado é composto principalmente por pessoas brancas, de classe média, que vivem em áreas rurais ou suburbanas da Holanda, sendo ainda popular entre os jovens e os desempregados. Uma vez mais, semelhante aos demais partidos desta natureza. Trata-se de um país de pobreza relativa e baixa taxa de insucesso escolar, sendo ambos fenómenos maiores entre as populações imigrantes. Nesse sentido, o sucesso de Wilders centra-se na agenda anti-islão, em linha com uma tradição europeia de «pânico moral» associada a imigrantes e refugiados que tem levado ao fabrico de notícias falsas sobre violência e crime, com o intuito de levar a um voto nestes partidos radicais. Todavia, esta análise enquanto doutrina corrente não faz mais do que identificar sintomas, estando presente numa abordagem política de esquerda cada vez menos eficaz. Isto porque a esquerda europeia, cada vez mais pós-material, concentrada em batalhas culturais e identitárias, perdeu terreno nas preocupações materiais, experimentando um enorme fosso entre ideias e teorias e a preocupação corrente das populações. A partir dessas pautas, concentra-se na mais-valia do multiculturalismo e num dever de acolhimento sem contrapartidas por parte dos Estados, adotando uma posição moral e moralizante sobre o fenómeno migratório.
Ora, a necessidade de imigração para conter o inverno demográfico (que precisa igualmente de ser combatido desde logo junto dos nacionais, com apoios à natalidade), um dever de acolhimento e a mais-valia do multiculturalismo não impedem que vejamos os problemas inerentes ao modelo “portas abertas” que se adotou, sem um necessário controlo de fluxos migratórios, que permita impedir a exclusão social e a criação de bolhas sociais de tal forma fechadas sob pertenças étnicas e religiosas que formem microssociedades adversas à sociedade geral. Ou seja, o multiculturalismo não pode ser uma via de um sentido único, baseada numa lógica de “culpa branca”, mas deve ter uma dimensão programática de inclusão, de gestão dos fluxos, e de um diálogo como dever-ser, e isso implica acolher e ter vontade de integração, implica duas vias. Caso contrário a Europa acabará governada por partidos de direita radical, que a pretexto do combate à imigração e em nome do “pânico moral”, imporão uma agenda desprotetora na economia e castradora das identidades pessoais.
Comumente considerado um produto de beleza feminina, símbolo de sensualidade e feminilidade, foi, ao mesmo tempo, durante os dois últimos séculos, um símbolo de empoderamento feminino, sobretudo nas suas cores vibrantes que desafiavam a ideia de recato. No século XIX, por exemplo, as sufragistas usavam batom vermelho para chamar a atenção para a sua causa. Elas acreditavam que o batom era uma forma de desafiar os estereótipos sobre as mulheres como seres frágeis e dependentes. Contudo, os últimos anos marcaram uma viragem profunda na interpretação feminista sobre o batom. Em razão de um enquadramento teórico-ativista de inspiração pós-marxista, o batom passou a ser classificado, por largos setores do movimento feminista, como símbolo do patriarcado e da sua opressão sobre as mulheres e consequente objetificação sexual.
Em razão desse enquadramento ideológico, emerge uma agenda feminista que determina o que deve ou não deve uma mulher fazer, vestir, aceitar sexualmente, a fim de ser uma «verdadeira» feminista, praticando uma espécie de «opressão do bem», o que em última instância não deixa de ser uma forma de opressão.
Ora, considero que o combate ao patriarcado não é sobre alguém ditar o que as mulheres devem ou não fazer com seus corpos, mesmo que esse alguém seja uma mulher que se considera representante legítima e líder intelectual do feminismo. O combate ao patriarcado e a defesa das mulheres é sobre a liberdade de escolha, sobre a poder usar ou não usar batom, poder usar ou não usar vestidos, pode ser progressista ou conservadora, poder ser lésbica, bissexual, heterossexual ou assexual. O que implica que não devem ser pressionadas ou julgadas pelas suas escolhas. Por ninguém, sob pena de se encontrarem sob jugos paternalistas.
Vigorou em Portugal a ideia de excecionalismo português face ao populismo, como se a geografia e uma “brandura” de personalidade fossem fatores de impermeabilidade ao fenómeno do populismo. Não obstante a ilusão de imunidade, o populismo sempre existiu no país, muitas vezes disfarçado sob outras formas mais sutis.
Tratava-se, evidentemente, de um wishful thinking, o qual casava bem com outra ilusão de excecionalismo: a do colonialismo benemérito, o qual alimentou a ideia de um excecionalismo positivo na história de Portugal, evitando o debate sobre as diversas esquinas do passado. Em jeito de parêntesis: ao mito do “bom colonizador” não tem, acredito, de se opor uma postura muito advogada hoje, de atos de contrição sobre a história, em modo de penitência retrospetiva sem incluir os contextos e a multiplicidade de fatores presentes na História.
Retomando: quando se tomou consciência de que o populismo tinha caminho para andar em Portugal já o Chega estava no Parlamento.
Daqui emerge uma nova perceção, a de que o populismo em Portugal é um sintoma temporário, resultado do descontentamento com a elite política, vista como focada apenas nos seus interesses e inerentemente corrupta. No entanto, essa visão pode ser outra ilusão, pois há um terreno fértil para um populismo identitário no país.
Ora, este tipo de populismo baseia-se no medo da ameaça cultural e religiosa alegadamente trazida pela imigração. Esta reação está na base do "pânico moral", que foi responsável pelo crescimento de partidos populistas em outros países, como a AfD na Alemanha e o movimento pró-Brexit no Reino Unido. Pela ideia de que a cultura e a identidade religiosa estão ameaçadas, julgo operatório designar tal pânico como “cultural” ou “identitário”, uma vez que a noção de “moral” é melhor aplicável às disputas das “guerras culturais”.
Assim, o partido Chega, ou qualquer outro que adote um discurso populista identitário, pode encontrar um público disposto a apoiar as suas ideias, especialmente se não houver uma resposta eficaz para enfrentar as questões subjacentes que alimentam o sentimento populista.