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Anatomia da Palavra

Os resultados nos Países Baixos e o seu significado

Novembro 23, 2023

Mais importante do que a vitória de Geert Wilders e do seu partido nas eleições nos Países Baixos, é o significado global que está associado a estes resultados, quanto mais não seja porque formar governo será uma tarefa extremamente difícil. Desse modo, o mais significativo é o sintoma que está associado à eleição e ao voto no Partij voor de Vrijheid, conhecido pela sigla PVV. Trata-se de um partido-padrão da nova direita radical populista, congregando uma agenda económica liberal ou ultraliberal com valores morais e sociais conservadores. O seu eleitorado é composto principalmente por pessoas brancas, de classe média, que vivem em áreas rurais ou suburbanas da Holanda, sendo ainda popular entre os jovens e os desempregados. Uma vez mais, semelhante aos demais partidos desta natureza. Trata-se de um país de pobreza relativa e baixa taxa de insucesso escolar, sendo ambos fenómenos maiores entre as populações imigrantes. Nesse sentido, o sucesso de Wilders centra-se na agenda anti-islão, em linha com uma tradição europeia de «pânico moral» associada a imigrantes e refugiados que tem levado ao fabrico de notícias falsas sobre violência e crime, com o intuito de levar a um voto nestes partidos radicais. Todavia, esta análise enquanto doutrina corrente não faz mais do que identificar sintomas, estando presente numa abordagem política de esquerda cada vez menos eficaz. Isto porque a esquerda europeia, cada vez mais pós-material, concentrada em batalhas culturais e identitárias, perdeu terreno nas preocupações materiais, experimentando um enorme fosso entre ideias e teorias e a preocupação corrente das populações. A partir dessas pautas, concentra-se na mais-valia do multiculturalismo e num dever de acolhimento sem contrapartidas por parte dos Estados, adotando uma posição moral e moralizante sobre o fenómeno migratório.

Ora, a necessidade de imigração para conter o inverno demográfico (que precisa igualmente de ser combatido desde logo junto dos nacionais, com apoios à natalidade), um dever de acolhimento e a mais-valia do multiculturalismo não impedem que vejamos os problemas inerentes ao modelo “portas abertas” que se adotou, sem um necessário controlo de fluxos migratórios, que permita impedir a exclusão social e a criação de bolhas sociais de tal forma fechadas sob pertenças étnicas e religiosas que formem microssociedades adversas à sociedade geral. Ou seja, o multiculturalismo não pode ser uma via de um sentido único, baseada numa lógica de “culpa branca”, mas deve ter uma dimensão programática de inclusão, de gestão dos fluxos, e de um diálogo como dever-ser, e isso implica acolher e ter vontade de integração, implica duas vias. Caso contrário a Europa acabará governada por partidos de direita radical, que a pretexto do combate à imigração e em nome do “pânico moral”, imporão uma agenda desprotetora na economia e castradora das identidades pessoais.

A vitória de Milei e o populismo a galope

Novembro 20, 2023

Javier Milei venceu as eleições presidenciais argentinas. Esta vitória tem importantes significados que necessitam ser deduzidos. Em primeiríssimo lugar, trata-se de uma vitória que acompanha uma tendência global de recuo de um modelo saído do pós-II Guerra Mundial e sobretudo do pós-queda do muro de Berlim, de uma conjugação de princípios democráticos com valores liberais e sociais, assente no casamento entre Estado de Direito e Estado Social. Esse recuo ou queda, acontece porque o Estado de bem-estar social (i) não chega a todos os cidadãos, (ii) não é possível sustentar sem fluxos migratórios em face do crescendo do inverno demográfico, (iii) a interdependência da economia global e a dependência face às flutuações dos mercados financeiros têm levado a um decréscimo na segurança económica intergeracional.

Consequência: há um ressentimento entre os descamisados da globalização e entre os que foram perdendo a confiança de que os filhos viveriam sempre melhor do que os pais. A insegurança de que mais qualificações académicas não chegam para garantir estabilidade e de que não há empregos seguros, a criação de uma máquina burocrática pesada que distancia as instituições das pessoas, o ressentimento dos mais vulneráveis face a grupos minoritários ainda mais vulneráveis, mas que se configuram como uma ameaça, bem como o salto geracional entre os que conheceram as agruras dos regimes autoritários e aqueles que nasceram em democracia, tudo isto tem conduzido a um contexto alargado de disponibilidade para soluções autoritárias/populistas/messiânicas, particularmente de pendor nacionalista.

Foi assim na Hungria de Viktor Órban, onde valores liberais cederam perante uma ideia de democracia assente no maioritarismo cultural e identitário, em torno de um mito de nação cristã. Foi (e poderá voltar a ser) assim com a América de Donald Trump, com a nostalgia dos “golden days of yore” e as guerras culturais da “América profunda” contra o progressismo citadino. Foi assim com o Brasil de Jair Bolsonaro, reproduzindo o modelo trumpista de guerras culturais ao “petismo”. Foi assim com o “brexit” e a ameaça “deles” que vinham roubar a britanidade, os empregos e as mulheres.

No caso de Milei, a fórmula reproduz-se: um ator político percebido como um “outsider”, que fala claro e simples, com uma personalidade entre o histriónico e o messiânico, ao estilo Boris Johnson, que se levanta em nome “das pessoas” contra “eles”, as elites corruptas que levaram o país à perdição. No caso, contra a tradição peronista. Milei, como os demais populistas, tem um “canto de sereia” que vibra dentro de variados grupos. Não são apenas os mais pobres, os abandonados pela globalização ou os conservadores, é todo um vasto eleitorado que encontra sempre uma nota musical com que se identificar. Milei é contra o aborto. Nota conservadora tocada. É favorável a uma redução drástica de impostos. Nota que toca a classe média e alta. Defende a privatização de empresas públicas e do fim do controlo do Estado sobre a economia. Uma nota esplendorosa no coração dos neoliberais.

Há, portanto, um populismo a galope pelo mundo, que traz desafios à democracia liberal-social, ameaçando-a com a desfragmentação do princípio da diversidade em favor do maioritarismo ou monismo identitário. É um populismo que se levanta em nome do povo, mas fá-lo com políticas económicas que assentam no abandono dos mais frágeis em favor da autorregulação do mercado. É por tudo isto que tendo a discordar de Cas Mudde e da sua central definição do populismo como “ideologia de baixa densidade” para optar por uma ideia de que o populismo é, sobretudo, um modo de fazer política com vista a apelar aos sentimentos primários, podendo acoplar-se a diferentes ideologias.

Seja como for, a Argentina enfrenta enormes desafios. Nada de novo nas terras de Maradona, Messi e do Papa Francisco. Este último que poderia ser uma importante voz de contrapoder, considerando que Milei já o chamou de "comunista", "ditador" e "assassino". Veremos para onde galopa o populismo argentino, numa corrida que parece ter tudo para terminar no precipício.

originalmente ali.

 

"ou Trump ou morte"

Agosto 25, 2023

 

Esta é a realidade nos EUA na era de TrumpTenho por profunda convicção que vivemos num período de desconsolidação da democracia liberal, donde sairá uma nova forma de democracia de feição illiberal, nos melhores casos, e regimes autoritários. Isto deve-se ao facto das gerações atuais não saberem o que é viver sem democracia liberal, pelo que têm pouco apreço pelo Estado de direito democrático liberal, e estão muito dados a soluções militares e autoritárias, em torno de homens providenciais. As redes sociais deram um forte impulso a esta realidade, fazendo da separação de poderes, das garantias de direitos fundamentais e de eleições livres algo irrelevante, sob ataque de populistas que se afirmam a voz do povo, desde que essa voz seja capturável por si, afirmando uma clara tirania da maioria. Eles são democratas, numa lógica baseada na ideia de que “é democracia quando eu mando e comando o povo”.

Purificar a Sociedade, um ímpeto

Agosto 22, 2023

A propósito da notícia que dá conta que a música "Fat bottomed girls" dos Queen foi retirada da plataforma Yoto, por ser "imprópria para crianças", ocorre-me dizer que vivemos um tempo de um ímpeto purificador social, ou de outra forma: de vários ímpetos. Eles manifestam-se na tentativa de expurgar vícios “morais” na ânsia que criar uma sociedade nova, um jardim do Éden terreno, cuja materialidade doutrinária vai do radicalismo cristão que procura recriar uma sociedade do casal heterossexual que vai à igreja ao domingo, temente a Deus e odioso da diferença, até à Igreja da Nova Sociedade dos Reencantados do Mundo, que pretende proteger as crianças num mundo de “ursinhes carinhoses”. Ambos querem expurgar a sociedade uns dos outros, da diversidade de pensamento, vendo o mundo numa batalha espiritual entre o “bem e o mal”, num maniqueísmo primário, enquanto justiceiros, uns da justiça social e moral, mas pós-material, e outros da justiça moral onde o amor ao próximo é mesmo ao próximo, i.e., àquele que se parece consigo. 

image © FlorenceD-pix

Excecionalismos?

Julho 20, 2023

Por demasiado tempo andou a Ciência Política e o comentariado político iludidos com uma ideia de excecionalismo português face ao populismo, como se a geografia e uma “brandura” de personalidade fossem fatores de impermeabilidade ao fenómeno do populismo. Não obstante a ilusão de imunidade, o populismo sempre existiu no país, muitas vezes disfarçado sob outras formas mais sutis.

Tratava-se, evidentemente, de um wishful thinking, o qual casava bem com outra ilusão de excecionalismo: a do colonialismo benemérito, o qual alimentou a ideia de um excecionalismo positivo na história de Portugal, evitando o debate sobre as diversas esquinas do passado. Em jeito de parêntesis: ao mito do “bom colonizador” não tem, acredito, de se opor uma postura muito advogada hoje, de atos de contrição sobre a história, em modo de penitência retrospetiva sem incluir os contextos e a multiplicidade de fatores presentes na História.

Retomando: quando se tomou consciência de que o populismo tinha caminho para andar em Portugal já o Chega estava no Parlamento.

Daqui emerge uma nova perceção, a de que o populismo em Portugal é um sintoma temporário, resultado do descontentamento com a elite política, vista como focada apenas nos seus interesses e inerentemente corrupta. No entanto, essa visão pode ser outra ilusão, pois há um terreno fértil para um populismo identitário no país.

Ora, este tipo de populismo baseia-se no medo da ameaça cultural e religiosa alegadamente trazida pela imigração. Esta reação está na base do "pânico moral", que foi responsável pelo crescimento de partidos populistas em outros países, como a AfD na Alemanha e o movimento pró-Brexit no Reino Unido. Pela ideia de que a cultura e a identidade religiosa estão ameaçadas, julgo operatório designar tal pânico como “cultural” ou “identitário”, uma vez que a noção de “moral” é melhor aplicável às disputas das “guerras culturais”.

Assim, o partido Chega, ou qualquer outro que adote um discurso populista identitário, pode encontrar um público disposto a apoiar as suas ideias, especialmente se não houver uma resposta eficaz para enfrentar as questões subjacentes que alimentam o sentimento populista.

Almirante

Junho 23, 2023

Pedro Correia tem razão, restam poucas dúvidas de que o Almirante Gouveia e Melo tem pretensões presidenciais evidentes, sendo notório que as suas aparições públicas confirmam um pendor político que é, não raras vezes, contrário às funções que desempenha. A confirmar-se, oficialmente, a candidatura, e considerando a personalidade do Almirante, teremos o regresso do populismo militar, que José Pedro Zúquete bem descreve no seu livro Populismo (cuja recensão fiz aqui). 

LULA VENCEU, A DEMOCRACIA NÃO GANHOU E AMANHÃ NÃO SABEMOS SE O SABIÁ CANTA

Dezembro 11, 2022

(texto escrito na alvorada da vitória)
Lula ganhou, mas não venceu. Os resultados deixam o país na mesma fissura e sem particulares hipóteses de reconciliação. É um país sem vasos comunicantes. Se o Senado é de forte expressão bolsonarista, com as presentes eleições vimos São Paulo eleger e Rio de Janeiro reeleger governadores de igual tendência, com Haddad, potencial sucessor de Lula a perder em território paulista e ficando sem capital político para o futuro.

Nas ruas a narrativa do presidente-bandido prevalece entre o eleitorado branco, evangélico e de classe média. Os casos que indiciam corrupção, formação de milícia e violação de direitos humanos na era Bolsonaro não produzem efeito de afastamento de um eleitorado arregimentado. Uma vez mais, o Brasil é uma cópia adaptada dos EUA. Mesmo Lula tendo o apoio dos evangélicos moderados e de boa parte da elite económica e empresarial, facto que inviabiliza qualquer fantasia de venezuelização do país (que nunca ocorreu), a verdade é que a batalha cultural contra o dito “marxismo cultural” em favor de uma hipermoral evangélica e dos direitos de classe alienam o eleitorado bolsonarista, o qual sobrevive bem sem Bolsonaro, já que é um produto histórico e social antigo que sempre esteve vivo no Brasil.

Não obstante os resultados eleitorais, a situação política e social está muito longe de estar sanada. Nas ruas teremos um arregimentar das milícias populares pró-Bolsonaro e algo similar ao ataque ao Capitólio é bastante viável de acontecer. O incitamento à intervenção dos militares ganhará força e a recusa em aceitar os resultados eleitorais, com fabricação de suspeitas de fraude, fará também o seu caminho. A democracia brasileira não está minimamente a salvo e até 1 de Janeiro de 2023 muita água (e esperemos que nenhum sangue) irá correr no Brasil.

Assim, partindo do princípio de que a situação social não entrará numa escalada de guerra civil, já que o ódio é o grande leitmotiv eleitoral no país, e que Lula da Silva tomará posse dentro do (mínimo) regular funcionamento das instituições, a democracia brasileira entrará no seu mais determinante capítulo desde o fim da ditadura. Lula precisará de (i) estabelecer acordos que lhe permitam governar, (ii) ser absolutamente impoluto, (iii) realizar uma purga à corrupção do partido, (iv) encontrar mecanismos de combate à pobreza e à violência, (v) repor os direitos das minorias entretanto suspensos, sem fazer dessa a sua pauta cultural, (vi) corrigir as assimetrias sociais e estaduais da melhor forma possível, visando um processo continuado de equilíbrio e aproximação do país, (vii) preparar a sucessão incentivando os demais partidos a encontrar quadros democráticos e qualificados que garantam uma saudável alternância política sem um enfoque populista e de guerra cultural. O desafio é hercúleo, porque o que está em causa, a partir de agora, é salvar a democracia dos seus mais terríveis fantasmas.

QUEM FALA PELO INTERIOR? A REVOLTA DA MARIA DA FONTE E A POLÍTICA DO RESSENTIMENTO

Novembro 21, 2022

 


 

Pensar na importância deste ressentimento rural, do apego às tradições locais, na precariedade laboral, na baixa escolaridade, nos baixos rendimentos, afigura-se mais prudente do que supor que o mundo rural que vota na direita radical o faz por mera adesão ao racismo e à xenofobia. 

 


 

No final do semestre passado, numa sessão na universidade, discutindo-se experiência de campo, i.e., pesquisa no terreno em ciências sociais, pesquisadores militantes de partidos mais à esquerda, falavam dos sérios problemas que enfrentam as populações racializadas, nomeadamente em matéria de política de alojamento urbano na cidade de Lisboa. A páginas tantas perguntei-lhes o que tinham a dizer sobre os problemas das populações rurais. Não tinham nada. Esta pontual ocorrência é um bom pretexto para um debate sobre política de ressentimento e mundo rural. 

Sabemos que as transformações socioeconómicas trazidas pela vaga democrática e adesão à comunidade europeia produziram uma litoralização do país e um abandono do interior. Portugal foi-se tornando costa marítima, cidade e o resto paisagem. Ao mesmo tempo, desde a queda do muro de Berlim e a expansão da democracia liberal, experimentou-se um progresso material alargado, com crescimento económico, mobilidade e ascensão social e garantias de bem-estar por via do Estado Social. Essa realidade foi tapando os problemas de abandono do interior, das assimetrias sociais e, num quadro abrangente, os diferentes ritmos de crescimento e desenvolvimento dos países ocidentais, cada vez mais integrados num espaço comum político e económico, sem as mesmas condições. A globalização, com a deslocalização das indústrias e uma ótica comercial de interdependência mundial, deixou uma vasta população operária ocidental em situação precária, forçada a procurar novas formas de rendimento, muitas vezes dependente de apoios sociais. Situação agravada com a crise de 2008 das dívidas soberanas.

Se nos momentos imediatos à crise de 2008 houve uma concentração em questões materiais ligadas à pobreza, desemprego, perda de rendimentos, também se abriu terreno para um acelerar de manifestações políticas de teor populista que embrulharam questões matérias e imateriais, recuperando as chamadas guerras culturais. A Esquerda foi aderindo a uma agenda pós-material, alimentada por populações urbanas com suficiente segurança económica, abandonando ou secundarizando as lutas pelas condições laborais e a agregação sindical, um maior equilíbrio na redistribuição da riqueza, ou a pobreza material, para se concentrar em diversas franjas identitárias e tipos de marginalização, que se manifestou em combates tais como ao “machismo tóxico”, pela identidade de género e antirracismo. No outro campo, a Direita aderiu de igual modo a agendas identitárias, numa lógica essencialmente a contrario das que caracterizam a Esquerda, através do chamado nativismo, isto é, uma concentração em valores tidos por patrióticos e que enfatizam um primado do monismo identitário, ou seja, a defesa dos valores civilizacionais judaico-cristãos, com a defesa da “família tradicional” contra a “ideologia de género”.

Ora, supunha-se que em sociedades de tradição liberal compaginada com garantias do bem-estar social (Estado Social) a agenda identitária de Direita, nacionalista, biocultural, em alguns casos racista e xenófoba, tivesse baixa adesão popular. A equação desconsiderou que ao enfatizar as questões pós-materiais, a Esquerda deixou livre uma parte do seu eleitorado, que procurou outras formas de canalização do seu ressentimento.

E isto tem tudo que ver com a revolta da Maria da Fonte, de 1846. Ocorrida num contexto de transformação e tensão política entre os valores liberais urbanos e o conservadorismo do interior, o levante popular deveu-se à proibição dos enterros no interior das igrejas por questões de saúde pública, medida interpretada como um ataque ao mundo rural e suas tradições por parte do poder político urbano, cada vez mais concentrado e contrário à autonomia dos municípios. 

O ressentimento rural não é um dado a desconsiderar em Portugal, onde não chega existirem autoestradas para se afirmar a existência de um país ligado.

Assim, a pergunta que se coloca é a de saber quem fala pelo mundo rural? Numa altura em que a CDU perde (pela mais variada ordem de razões, nomeadamente as transformações socioeconómicas das populações) força eleitoral, deixando de eleger deputados no mundo rural, em que o CDS-PP enfrenta o seu desaparecimento (e por ser um partido tendencialmente classista já não elegia no interior), o mundo rural, com os seus problemas efetivos, de abandono, pobreza, precariedade laboral, torna-se terra fértil para ressentimentos. 

Pensar na importância deste ressentimento rural, do apego às tradições locais, na precariedade laboral, na baixa escolaridade, nos baixos rendimentos, afigura-se mais prudente do que supor que o mundo rural que vota na direita radical o faz por mera adesão ao racismo e à xenofobia. A garantia da dignidade humana precisa ser considerada de modo universalista, integrando a consciência da necessidade de olhar para interseções de marginalidade que afetam populações racializadas, mas não opondo essa urgência a outras, porque um cidadão urbano vale o mesmo que um cidadão no mundo rural.

SIC TRANSIT GLORIA MUNDI

Outubro 10, 2022

O desaparecimento das questões materiais como matéria essencial da política e da sociedade, resultante de sociedades que atingiram um certo bem-estar geral, foi compensado por questões pós-materiais ligadas ao progressismo moral, através de correções, compensações e valorizações de identidades minoritárias, segundo a lógica de que o princípio da igualdade pressupõe a garantia do direito à diferença e à compensação por via da discriminação positiva. Este ciclo acelerado de mudança para um pluralismo complexo, que desconstroi o primado de uma ideia de unidade moral e cultural, foi questionado, desde 2008, com crises económicas, e a emergência de um ressentimento de natureza material por parte de populações fragilizadas (facto que serve para questionar a teoria do privilégio branco) que aderem a uma agenda política nova e radical que afirma dar voz ao "povo" contra as "elites", que combina uma agenda económica na verdade neoliberal com um conservadorismo moral que oferece sentido de pertença e conforto (exatamente igual ao que o ativismo e o associativismo oferecem). Ora, através dessa nova agenda pós-material assistimos à adesão às guerras culturais, que tornam matéria de confronto questões que teriam vocação para o consenso se o progresso dos direitos fundamentais não tivesse sido interrompido por uma crise económica global que acordou a ansiedade masculina sobre o seu papel como provedor da família (e com isto o debate sobre o que é uma família), que agudizou uma sensação de abandono entre as populações rurais, e tornou alvo de ressentimento os ativismos que se focam na culpabilização de larga escala dos sujeitos vistos como da maioria dominante e que a direita radical acolhe como maioria silenciosa. Há, portanto, um confronto de sentimentos de vítima, ressentidos e arreigados à sua posição, com perdas claras no consenso social. Por isso, a presença de um casal homossexual em desenhos animados é percebido como um ataque à identidade da Nação e aos valores civilizacionais ocidentais. E isto é uma vitória da Nova Direita sobre uma esquerda que, como diz Fukuyama (e não só), deixou de se preocupar com valores universais.

DE LE PEN AO CHEGA, UM ELEITORADO ALÉM DO RACISMO

Junho 12, 2022

Ao entregar o discurso racial e etno-nacionalista a Zemmour, concentrando-se em sentimentos de revolta e em narrativas populistas mais transversais, Le Pen deixou evidente que a forma como se move na política é bem diferente do seu pai, sendo muito mais próxima do modelo da nova direita trumpista e brexista, portanto de ideologia de ocasião. E isto significa, queira-se ou não, uma capacidade política de entrar no eleitorado de esquerda radical, bem patente na intenção de voto de parte do eleitorado de Mélenchon.
A literatura bem vem evidenciando que a adesão a discursos antisistémicos é resultado de uma ansiedade masculina branca de classe média-baixa e baixa (working-class) e suas famílias, para quem interessa mais a comida na mesa do que as lutas pós-materiais identitárias da nova esquerda burguesa. Quem não percebe isto vive numa redoma, não compreendendo que a racialização do outro é um fenómeno de longo-termo, inscrito nas ansiedades laborais dos sujeitos e não apenas no racismo biológico herdado do nefasto pensamento colonial. É o fenómeno Brexit no seu esplendor.
Por cá, ainda antes do Chega, o CDS de Manuel Monteiro percebeu a dinâmica da sensação de abandono nas áreas rurais.
Ora, entre o abandono rural e a ansiedade urbana face ao "outro", o eleitorado não-militante tornou-se ávido de vozes de protesto. É por isso que a explicação racista como fundamento único para a adesão à direita radical é insuficiente, porque o "eles" e "nós" nem sempre é relativo à imigração, aos refugiados, às minorias ou ao Islão, é muitas vezes sobre cidade/campo, povo/elite, divisão clássica populista e fascista que procura mobilizar a precariedade para tomar o poder.

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Anatomia da Palavra é um blogue de João Ferreira Dias, escrito segundo o Acordo Ortográfico, de publicação avulsa e temática livre. | No ar desde 2013, inicialmente sob o título A Morada dos Dias Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

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João Ferreira Dias é Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, no Grupo Instituições, Governação e Relações Internacionais. Interessado por Direitos Fundamentais, Teoria Política e do Estado, Direito Constitucional, e Antropologia Religiosa.