Portugal, sem dúvida, necessita realizar o debate sobre o racismo enraizado, a memória colonial e tantas outras feridas sociais que há muito se fingem inexistentes. Todavia, este é o momento menos propício para submergir na política das identidades. O foco deve estar na forma como a direita radical capitaliza o endurecimento securitário do Estado, insufla discursos de ódio e semeia a fissura no tecido social. Há que questionar como essa corrente, mesmo ao proferir declarações vis e indecorosas, consegue ainda assim granjear apoio social. O que se revela, afinal, não é apenas uma simpatia pelo ultraje, mas uma inquietante inclinação coletiva para aceitar, e até desejar, um Estado de feição autoritária.
O autor das palavras é assessor político do Chega e o seu post, conjugado com as declarações de Ventura de que é preciso condecorar o agente que matou Odair Moniz, sem apuramento dos factos, como recompensa simbólica pelo ato, permite compreender que, de facto, estamos perante uma guerra cultural em torno da ação policial do Estado. Isto mais não é do que uma importação da narrativa bolsonarista de “bandido bom, é bandido morto”, mesmo que em causa não esteja um bandido, mas apenas alguém que corresponde ao estereótipo. Portanto, há uma guerra cultural sobre a identidade biocultural e sobre a ideia de Estado policial, em que as forças de autoridade não devem ser escrutinadas. Qual o outro lado da rua? A ideia de que em cada polícia há um agressor. A verdade é que o corporativismo tem optado pela autopreservação, o que equivale a perpetuar problemas endémicos.
Por outro lado, a referência ao BE é parte dessa guerra cultural, ao centrar-se na ideia de que a Esquerda está de conluio com o globalismo e ao defender as minorias é, na verdade, cúmplice dos seus crimes, sendo o BE a "casa" dos bandidos. Uma vez mais, a fórmula bolsonarista em ação.
O caso do homicídio de Odair Muniz tem o potencial para ser uma versão portuguesa de George Floyd, embora os trâmites não sejam exatamente iguais. Por pontos, para facilitar a leitura, o meu entendimento:
1. Ao ter ameaçado a polícia com arma branca colocou-se numa situação delicada, em que abdica de parte da sua integrida de física, em razão de se constituir como ameaça.
2. A reação dos agentes foi desproporcional face à ameaça, pelo que constitui matéria penal.
3. Existe um longo historial, devidamente documentado, de abusos policiais em zonas urbanas delimitadas como zonas perigosas, especialmente racializadas.
4. Os abusos policiais são inadmissíveis e refletem um problema sistémico de racismo nas forças de segurança, que não tem sido devidamente intervencionado pelo Estado.
5. Isto não significa que os ditos “bairros problemáticos” sejam vítimas de um plano do Estado para execução de genocídio. Também não significa que neles não habitem cidadãos com cadastro e/ou violentos. A constituição do oprimido como puro é um delírio ideológico.
6. Os distúrbios são resultado de uma indignação pela longa falha do Estado e sensação de impunidade.
7. Os distúrbios são inaceitáveis, e os responsáveis devem ser devidamente punidos.
8. O aproveitamento do Chega do caso é inaceitável, já que serve para reforçar a narrativa do Estado securitário, meio caminho para o Estado de exceção que abre a porta aos regimes autoritários.
9. Haver políticos de centro-direita a usar o caso para falar sobre controlo migratório é inaceitável, já que torna o tema radicalizado.
O que precisamos é de apuramento concreto dos factos, punição para o agente que cometeu o crime, provada a sua culpa e dolo, reposição da normalidade através do fim dos distúrbios e penalização dos responsáveis, e de uma vez por todas resolver os problemas de capacitação dos agentes para lidar com situações de risco, potencial risco ou nenhum risco em caso de minorias. E “sim”, isso também passa por ter agentes racializados, minorizando potenciais tensões raciais.
O que Ricardo Salgado foi para o país, negativamente, é inegável. Enquanto Dono Disto Tudo, tinha o mando e desmando do país. Mas a justiça foi pesarosamente lenta, uma vez mais, a julgar os factos, e com isso Salgado é hoje um ser humano que desconhece do que é acusado, provavelmente desconhecendo-se a si mesmo. A culpa é da justiça, que vai levar a ser julgado um homem que não sabe quem é, quem foi, o que fez. Tudo o mais é espetáculo mediático. E é pena, porque Salgado deveria ter sido julgado de forma ciente.
Quando os políticos se fecham em circuitos próprios perdem a ligação ao chamado “país real”. Existem boas razões políticas e de matéria para que o PS considere um chumbo orçamental, mas no final devem ponderar a percepção pública, a qual, julgo, não será simpática com os socialistas. Vindo de oito anos de governo, um chumbo pode bem ser lido como “querer voltar ao tacho”.
É verdade que tal permite ao Chega afirmar que os dois partidos do centro são iguais, estão de conluio e a única alternativa real é aquele partido. Mas o CH terá sempre algo para dizer, nomeadamente que o PS chumbou o orçamento porque quer “poleiro” e é irresponsável, e que a única alternativa é o Chega. Tanto faz, portanto, porque o CH pode usar sempre a mesma estratégia.
Quanto ao PS, então, pode bem abster-se e deixar o CH com a responsabilidade (que já disse que tudo fará para evitar uma crise política), permitindo encaminhar-se para a votação na especialidade.
O braço de ferro está montado. O PS mantém-se inflexível nas matérias que determinou (IRS Jovem e IRC), o que constitui comportamento natural, e o PSD diz que o PS tem uma postura radical e inflexível. Tudo normal em fase preliminar das negociações, e considerando que o PS não pode passar um cheque em branco e o PSD até nem se importa de ir para eleições.
O que mais me preocupa na eventual candidatura de Gouveia e Melo e na sondagem que o dá como um dos preferidos dos portugueses, é que podemos estar diante de um exemplo de populismo militar de estilo "caudilho" que tivemos na América Latina e em boa parte do século XX em Portugal. Sem lhe conhecermos quaisquer ideias para o país, sobre a sociedade, valores e princípios, ficamos com a performance do homem de farda que vai dizendo umas coisas soltas, algumas de baixo nexo. Ora, num tempo em que a nostalgia dos autoritarismo faz o seu percurso, é muito preocupante neste sentimento nacional. Marcelo Rebelo de Sousa (a tomar por boa a informação do Expresso) tem razões para estar preocupado.
O PS não aceita, e bem, o RS Jovem. O PSD considera essa medida nodal do seu programa político, donde não pretende abrir mão do mesmo. Ora, o PSD tem com o Chega e a IL uma maioria para o aprovar. Para manter a espinha dorsal, o PSD não quer esse acordo, mas o voto favorável do PS. Assim, o que temos é um cerco ao PS: ou aprova tudo para não ser o mau da fita, ou é o mau da fita que precipita eleições. Negociar não é isto, mas o PSD também tem por horizonte repetir Cavaco Silva. No entanto, o PS também não soube andar bem nesta matéria, coisa que se percebe sobre quem está na corda-bamba.
Várias são as cidades que estão a trocar as carruagens a cavalo por carruagens elétricas, acomodando a oferta turística ao bem-estar animal, em linha com uma nova consciência social e jurídica emergente. Há, contudo, uma questão que não está a ser colocada no seio de uma disputa cultural sobre o lugar dos animais na sociedade atual, que é a de saber o que se faz aos animais que deixam de ter uso económico. Há todo um lastro socioeconómico de criação de cavalos (e outros animais) que está associada ao desporto, ao turismo, a diversas atrações. Com o fim deste mercado, como ficam os animais? Será que quem os cria, com enorme despesa envolvida, o continuará a fazer? Não estaremos a colocar em risco a sobrevivência de espécies?
A transição de carruagens a cavalo para carruagens elétricas em várias cidades é uma medida que, à primeira vista, parece atender à crescente demanda por práticas que respeitem o bem-estar animal e estejam em sintonia com uma nova consciência social e jurídica. Esta mudança reflete um avanço na perceção da sociedade sobre o tratamento dos animais, especialmente em contextos onde o turismo e o lazer envolvem o uso de animais de tração. No entanto, essa iniciativa também levanta questões importantes que precisam ser cuidadosamente consideradas e que, até agora, parecem ter recebido pouca atenção no debate público, fazendo uso de uma abordagem de proporcionalidade entre o objetivo a atingir e os meios envolvidos para esse fim.
Uma das questões centrais é o destino dos animais que, com a eliminação das carruagens puxadas por cavalos, deixam de ter um papel económico claro. A história da domesticação dos cavalos está profundamente enraizada em atividades humanas como o transporte, o desporto e o entretenimento. Assim, a retirada desses animais dessas funções levanta a pergunta: o que acontecerá aos mesmos?
Com efeito, a perspetiva de manter e cuidar de um cavalo sem que ele desempenhe uma função lucrativa pode ser insustentável para muitos proprietários. Isso poderia/poderá levar a um aumento no abandono ou, no pior dos cenários, no abate desses animais, caso não sejam acautelados tais efeitos e procuradas soluções de mitigação.
Além disso, há que se considerar a cadeia produtiva associada à criação de cavalos, que inclui desde criadores até veterinários e fabricantes de equipamentos específicos. Se a procura por cavalos diminuir drasticamente, muitos desses profissionais e negócios podem enfrentar dificuldades económicas significativas, o que, por sua vez, pode ter um impacto negativo nas economias locais e regionais dependentes desse setor.
Outra dimensão do problema é a possível ameaça à conservação de certas raças de cavalos que, tradicionalmente, são criadas para essas atividades. Sem uma procura constante, pode não haver incentivo económico para continuar a criação dessas raças, o que poderia colocar em risco a sua sobrevivência a longo prazo.
Embora a medida esteja alinhada com uma nova consciência social e jurídica sobre o tratamento dos animais, ela não considera plenamente as consequências económicas, culturais e ambientais caso se alastre a regiões profundamente ligadas a tradições equestres, como o Ribatejo, onde cavalos e touros são parte integrante da identidade local, donde a mudança pode ter impactos devastadores para a economia e para o património cultural.
Por fim, a questão de se criaremos reservas ou áreas protegidas para cavalos selvagens ou sem uso económico é algo que deve ser seriamente ponderado. Se a sociedade decidir que esses animais devem ser preservados independentemente de sua utilidade económica, isso exigirá a criação de políticas públicas específicas, investimentos em infraestrutura e talvez até a redefinição de certos espaços geográficos para acolher esses animais de forma digna e sustentável, o que tem custos que podem não ser realistas para autarquias ou para determinados Estados que lutam com constrangimentos orçamentais e a necessidade de atender ao Estado Social.
Portanto, ao considerar a troca das carruagens a cavalo por carruagens elétricas, ou medidas mais abrangentes de supressão do uso animal, ou mesmo extinção de práticas como as tauromáquicas, é crucial que se faça uma avaliação abrangente dos impactos dessa mudança. A decisão deve ir além da preocupação com o bem-estar animal imediato e contemplar as consequências socioeconómicas e ambientais a longo prazo. Será que na tentativa de corrigir uma injustiça, poderemos inadvertidamente criar novos problemas, tão graves quanto aqueles que pretendemos solucionar?
Costuma-se dizer que Portugal é um país acolhedor. Por Portugal entende-se os portugueses, a sociedade portuguesa. No entanto, ouvimos queixas de imigrantes sobre xenofobia e racismo, e tudo é questionado. Os mais conservadores recusam tais acontecimentos, duvidando da sua veracidade, enquanto os mais progressistas enfatizam que Portugal (a sociedade) é estruturalmente racista e xenófobo, sem diferença em relação a outros povos. Ora, a realidade parece contrariar ambas as posições. Por um lado, dados do European Social Survey mostram crenças racistas disseminadas na sociedade portuguesa; por outro, um inquérito aos afrodescendentes na Europa revela que Portugal é onde se sentem menos vítimas de discriminação. O que sucede é uma confusão entre receber e acolher. Portugal é um país que sempre recebeu bem, devido à sua natureza transitória, amplamente ligada ao turismo, onde receber bem traduz-se em ganhos económicos. Ao mesmo tempo, graças ao Estado Novo, desenvolveu-se uma natureza servil na alma portuguesa. Contudo, receber não é acolher. Sabemos disso quando recebemos visitas em casa por alguns dias, ao invés de apenas algumas horas. Essa diferença aplica-se à sociedade. Portugal recebe bem, mas não acolhe tão bem. E, embora possamos afirmar que há uma hierarquização racial nesse processo, a questão fundamental é a distinção entre receber e acolher. Se é verdade que há uma preferência por europeus, também é verdade que existe uma rejeição, dado que fazem subir o preço dos imóveis, e um grupo de alemães alcoolizados pode ser menos agradável do que um grupo de bengaleses sossegados.