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Post{o} de Vigia

11.04.24

A conjuntura política brasileira dos últimos anos serve como um exemplo emblemático da consolidação das guerras culturais como um eixo dominante nas interações políticas, reconfigurando o espectro político e a agenda pública. Este fenómeno ganha contornos particulares num país que enfrenta desafios socioeconómicos críticos, com índices alarmantes de pobreza, insegurança alimentar, exclusão social e desigualdade económica. Paradoxalmente, a arena política tem se distanciado progressivamente das questões materiais urgentes, deslocando o foco para embates em torno de pautas morais e identitárias.

Um dos campos mais significativos dessa disputa cultural é o debate em torno do casamento homoafetivo, que se tornou um vértice de polarização aguda, frequentemente permeado por discursos que se valem de interpretações particulares de textos religiosos, notadamente a Bíblia, como fundamentação para argumentos políticos. Este recurso a referências religiosas na disputa política não só desafia a doutrina da separação de poderes, mas também coloca em xeque o princípio constitucional da laicidade do Estado brasileiro, que deveria garantir um espaço público neutro em relação a questões de crença religiosa.

A instrumentalização da religião nas guerras culturais brasileiras revela uma complexa interação entre dimensões religiosas, culturais e políticas, onde discursos teológicos são transpostos para a esfera pública como meio de contestação a direitos civis e liberdades individuais. Esta dinâmica não somente subverte a laicidade estatal, mas também transforma o espaço público em uma arena de confronto ideológico, onde as disputas transcendem as tradicionais linhas político-partidárias e se ancoram em uma moralidade absolutista.

Ademais, a ascensão dessas guerras culturais, com sua ênfase em questões morais e identitárias, tem o efeito colateral de desviar a atenção e os recursos das questões socioeconómicas prementes, que demandam soluções urgentes e políticas públicas eficazes. Este redirecionamento do debate político compromete não apenas a capacidade do Estado em responder às necessidades materiais de sua população, mas também fragiliza o tecido democrático, ao polarizar a sociedade e erodir o consenso em torno de valores democráticos fundamentais.

Neste contexto, torna-se imperativo uma reflexão crítica e profunda sobre o papel das narrativas culturais e religiosas na configuração da vida política brasileira e suas implicações para a democracia, a governança e a coesão social. A compreensão desses fenómenos é essencial para a elaboração de estratégias que promovam a inclusão, o respeito às diferenças e o diálogo construtivo, elementos vitais para a construção de uma sociedade mais justa, equitativa e verdadeiramente democrática.

09.04.23

O Diário de Notícias dá conta do crescimento das igrejas evangélicas em Portugal, graças ao aumento migratório brasileiro para Portugal. Esse facto não tem nada de inesperado. Pelo contrário, a transnacionalização religiosa acompanha os fenómenos migratórios, impondo mudanças ao campo religioso do país de chegada. Num país onde o catolicismo é historicamente dominante, mas amplamente dado a formas populares e alternativas de vivência espiritual (vide ex-votos[1]), haveria sempre espaço para novas dinâmicas e roteiros para o “sagrado”(2). A forte presença brasileira estaria prima facie associada ao crescimento de igrejas evangélicas, porquanto estas crescem fortemente no Brasil. Apesar de não parecer, à primeira vista, dado o substrato cristão, estas têm e terão um forte impacto social em Portugal, sobretudo pela dimensão evangelizadora fervorosa e pela dinâmica política de guerras culturais e religiosas que formam a sua própria identidade religiosa. Este facto tem trazido alguns problemas de controlo no Brasil, dado que a perseguição religiosa é parte da sua doutrina, além das confluências políticas. Para quem desconhece, a maioria destas igrejas nasce de uma ideia de guerra santa contra todas as demais religiões, inclusive contra o catolicismo, estando associadas a uma violência simbólica, material e física contra templos, igrejas e pessoas no Brasil. A destruição de santos e santas é uma prática recorrente, além dos ataques violentos e quotidianos contra as religiões afro-brasileiras (3). Com efeito, neste plano, é comum a conversão de traficantes nas "favelas", onde são ungidos como gladiadores de Jesus e perdoados pelos seus crimes de tráfico, conquanto agrediam, destruam e expulsem os templos e frequentadores das religiões de matrizes africanas.

No plano moral, verifica-se uma circunstância de batalha cultural contra a identidade de género, o aborto, a homossexualidade, e as mais diversas formas de pluralismo identitário e cultural, em favor de uma norma moral ultraconservadora, com a defesa de um modelo familiar onde a mulher ocupa uma posição subalterna e "do lar", onde se desencoraja o consumo de bens culturais como o cinema, exposições, concertos, e onde a televisão tem como único papel o consumo de canais evangélicos. Trata-se de uma tipologia de clausura urbana, em que vivendo na cidade, as pessoas vivem alineadas de grande parte das práticas em comunidade, já que na sua cosmovisão tudo está minado pela influência do demónio.

A conversão religiosa ao neopentecostalismo configura um fenómeno sociológico interessante, verificando-se que no Brasil há lugares com uma taxa de crescimento de perto ou mesmo de 100%. A penetração da sua moralidade na política é de destacar, verificando-se a leitura da Bíblia em muitas sessões plenárias. No Senado, é já conhecida a bancada evangélica, a qual toma parte do setor conservador do eixo boi-bala-bíblia.

Com efeito, na transnacionalização para Portugal esta onda de violência religiosa desaparece, ficando a luta pelo plano moral e cultural. No entanto, o crescimento destas igrejas é notório e já começam a dar sinais de expansão para fora das suas redes informais e de sociabilidade. As rádios evangélicas foram um passo importante nessa expansão. Em muitos lugares do país já surgem cartazes e outdoors de grandes dimensões com mensagens de conversão, e já tive a oportunidade de verificar verdadeiras marchas urbanas com cartazes anunciando a salvação e o dever de conversão, num processo que nos dá conta de uma nova abordagem de externalização e de importação de estratégias do Brasil. A integração nas fileiras do Chega - que necessitou de delimitar o seu impacto interno - revela uma estratégia de bolsonarização da política portuguesa.

Nesse sentido, diferentemente do crescimento das diversas igrejas evangélicas no séc. XX ou das transformações no campo religioso desse século, com efeitos no presente, o crescimento evangélico neopentecostal tem potencial para destabilizar o campo religioso e social português, dada a natureza genética destas igrejas de permanente guerra santa, que inclui o catolicismo, a maior mancha de fé no país.


(1) de Pina-Cabral, J. (1997)–O pagamento do santo-uma tipologia interpretativa dos ex-votos no contexto socio-económico português. Milagre que Fez. Coimbra: Museu Antropológico da Universidade de Coimbra, 79-104. // de Pina-Cabral, J. (2013). The gods of the gentiles are demons: the problem of pagan survivals in European culture. In Other histories (pp. 45-61). Routledge.

(2) conceito problemático (dado que parte de uma grelha ocidental de leitura sobre o religioso baseada na distinção entre "sagrado" e "profano", mas operário para a apreciação presente. 

(3) Ferreira Dias, J. (2019). “Chuta que é macumba”: o percurso histórico-legal da perseguição às religiões afro-brasileiras. Sankofa, (22), 39-62.

03.01.23

A separação entre Estado e Igreja, como processo de constituição das democracias liberais, abriu o caminho para a secularização social e o “desencantamento do mundo”. A ausência de uma religião civil nas sociedades ocidentais permitiu o surgimento de novos roteiros espirituais, tanto por via de inserção noutras comunidades religiosas convencionais, quanto através de um despertar espiritual baseado numa visão holística da espiritualidade, que a partir da individualidade liberal abriu a janela para a experiência de si mesmo como sujeito espiritual, aqui e agora, híbrido e segundo os interesses do momento. A esse despertar espiritual deu-se o nome de Nova Era. 

Ora, à margem desse despertar imaterial, ligado à experiência individual do sujeito-alma, deu-se um outro despertar político, baseado na experiência de si enquanto sujeito-opressor e sujeito-vítima, que produziu uma nova forma de religiosidade ocidental, mais intelectual, mais urbana, burguesa, que não perdeu, todavia, a condição de confissão ou comunidade espiritual. Falo do movimento woke, o qual apresenta uma estrutura similar a uma igreja cristã, contendo a culpa como mobilizadora da autoflagelação e da necessidade de expiação, uma boa nova que se apresenta como uma descoberta extraordinária e que é preciso levar aos que não a conhecem, o ímpeto de conversão paternalista, uma performance ritual coletiva, voltada às grandes marchas, e uma individual através das redes sociais, um desejo de purificação da sociedade, atitude de transcendência que vai além do clássico combate de ideias para veicular a verdade única, a presença de profetas e de um povo eleito, a existência de dogmas inquestionáveis, um sentido de pertença superior de quem está numa missão espiritual. 

Bem vistas as coisas, por mais desencantamento do mundo que tenha existido e da laicização que se sucedeu, o processo de despertar ou de reencantamento mantém todo o manual cristão, património cultural e religioso do Ocidente. Quando olhamos os movimentos políticas encontramos igual natureza confessional, com um líder messiânico (profeta), uma boa nova, um povo eleito, um sentido de missão espiritual que se traduz num combate cultural. O que difere é a natureza abrange do movimento, sociologicamente diversificado. 

Torna-se claro que o reencantamento do mundo é um processo em curso, que inclui o retorno às igrejas cristãs por via de uma agenda conservadora ligada em grande parte ao movimento populista, o movimento woke e a luta pela dignidade dos oprimidos através da purificação dos opressores, sem esquecer os mais espirituais Nova Era, voltamos exclusivamente ao individualismo espiritual e à experiência estética de reinventar-se dentro do caleidoscópio religioso do mundo. 

21.11.22

Pensar na importância deste ressentimento rural, do apego às tradições locais, na precariedade laboral, na baixa escolaridade, nos baixos rendimentos, afigura-se mais prudente do que supor que o mundo rural que vota na direita radical o faz por mera adesão ao racismo e à xenofobia. 


No final do semestre passado, numa sessão na universidade, discutindo-se experiência de campo, i.e., pesquisa no terreno em ciências sociais, pesquisadores militantes de partidos mais à esquerda, falavam dos sérios problemas que enfrentam as populações racializadas, nomeadamente em matéria de política de alojamento urbano na cidade de Lisboa. A páginas tantas perguntei-lhes o que tinham a dizer sobre os problemas das populações rurais. Não tinham nada. Esta pontual ocorrência é um bom pretexto para um debate sobre política de ressentimento e mundo rural. 

Sabemos que as transformações socioeconómicas trazidas pela vaga democrática e adesão à comunidade europeia produziram uma litoralização do país e um abandono do interior. Portugal foi-se tornando costa marítima, cidade e o resto paisagem. Ao mesmo tempo, desde a queda do muro de Berlim e a expansão da democracia liberal, experimentou-se um progresso material alargado, com crescimento económico, mobilidade e ascensão social e garantias de bem-estar por via do Estado Social. Essa realidade foi tapando os problemas de abandono do interior, das assimetrias sociais e, num quadro abrangente, os diferentes ritmos de crescimento e desenvolvimento dos países ocidentais, cada vez mais integrados num espaço comum político e económico, sem as mesmas condições. A globalização, com a deslocalização das indústrias e uma ótica comercial de interdependência mundial, deixou uma vasta população operária ocidental em situação precária, forçada a procurar novas formas de rendimento, muitas vezes dependente de apoios sociais. Situação agravada com a crise de 2008 das dívidas soberanas.

Se nos momentos imediatos à crise de 2008 houve uma concentração em questões materiais ligadas à pobreza, desemprego, perda de rendimentos, também se abriu terreno para um acelerar de manifestações políticas de teor populista que embrulharam questões matérias e imateriais, recuperando as chamadas guerras culturais. A Esquerda foi aderindo a uma agenda pós-material, alimentada por populações urbanas com suficiente segurança económica, abandonando ou secundarizando as lutas pelas condições laborais e a agregação sindical, um maior equilíbrio na redistribuição da riqueza, ou a pobreza material, para se concentrar em diversas franjas identitárias e tipos de marginalização, que se manifestou em combates tais como ao “machismo tóxico”, pela identidade de género e antirracismo. No outro campo, a Direita aderiu de igual modo a agendas identitárias, numa lógica essencialmente a contrario das que caracterizam a Esquerda, através do chamado nativismo, isto é, uma concentração em valores tidos por patrióticos e que enfatizam um primado do monismo identitário, ou seja, a defesa dos valores civilizacionais judaico-cristãos, com a defesa da “família tradicional” contra a “ideologia de género”.

Ora, supunha-se que em sociedades de tradição liberal compaginada com garantias do bem-estar social (Estado Social) a agenda identitária de Direita, nacionalista, biocultural, em alguns casos racista e xenófoba, tivesse baixa adesão popular. A equação desconsiderou que ao enfatizar as questões pós-materiais, a Esquerda deixou livre uma parte do seu eleitorado, que procurou outras formas de canalização do seu ressentimento.

E isto tem tudo que ver com a revolta da Maria da Fonte, de 1846. Ocorrida num contexto de transformação e tensão política entre os valores liberais urbanos e o conservadorismo do interior, o levante popular deveu-se à proibição dos enterros no interior das igrejas por questões de saúde pública, medida interpretada como um ataque ao mundo rural e suas tradições por parte do poder político urbano, cada vez mais concentrado e contrário à autonomia dos municípios. 

O ressentimento rural não é um dado a desconsiderar em Portugal, onde não chega existirem autoestradas para se afirmar a existência de um país ligado.

Assim, a pergunta que se coloca é a de saber quem fala pelo mundo rural? Numa altura em que a CDU perde (pela mais variada ordem de razões, nomeadamente as transformações socioeconómicas das populações) força eleitoral, deixando de eleger deputados no mundo rural, em que o CDS-PP enfrenta o seu desaparecimento (e por ser um partido tendencialmente classista já não elegia no interior), o mundo rural, com os seus problemas efetivos, de abandono, pobreza, precariedade laboral, torna-se terra fértil para ressentimentos. 

Pensar na importância deste ressentimento rural, do apego às tradições locais, na precariedade laboral, na baixa escolaridade, nos baixos rendimentos, afigura-se mais prudente do que supor que o mundo rural que vota na direita radical o faz por mera adesão ao racismo e à xenofobia. A garantia da dignidade humana precisa ser considerada de modo universalista, integrando a consciência da necessidade de olhar para interseções de marginalidade que afetam populações racializadas, mas não opondo essa urgência a outras, porque um cidadão urbano vale o mesmo que um cidadão no mundo rural.

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