21.11.22
Pensar na importância deste ressentimento rural, do apego às tradições locais, na precariedade laboral, na baixa escolaridade, nos baixos rendimentos, afigura-se mais prudente do que supor que o mundo rural que vota na direita radical o faz por mera adesão ao racismo e à xenofobia.
No final do semestre passado, numa sessão na universidade, discutindo-se experiência de campo, i.e., pesquisa no terreno em ciências sociais, pesquisadores militantes de partidos mais à esquerda, falavam dos sérios problemas que enfrentam as populações racializadas, nomeadamente em matéria de política de alojamento urbano na cidade de Lisboa. A páginas tantas perguntei-lhes o que tinham a dizer sobre os problemas das populações rurais. Não tinham nada. Esta pontual ocorrência é um bom pretexto para um debate sobre política de ressentimento e mundo rural.
Sabemos que as transformações socioeconómicas trazidas pela vaga democrática e adesão à comunidade europeia produziram uma litoralização do país e um abandono do interior. Portugal foi-se tornando costa marítima, cidade e o resto paisagem. Ao mesmo tempo, desde a queda do muro de Berlim e a expansão da democracia liberal, experimentou-se um progresso material alargado, com crescimento económico, mobilidade e ascensão social e garantias de bem-estar por via do Estado Social. Essa realidade foi tapando os problemas de abandono do interior, das assimetrias sociais e, num quadro abrangente, os diferentes ritmos de crescimento e desenvolvimento dos países ocidentais, cada vez mais integrados num espaço comum político e económico, sem as mesmas condições. A globalização, com a deslocalização das indústrias e uma ótica comercial de interdependência mundial, deixou uma vasta população operária ocidental em situação precária, forçada a procurar novas formas de rendimento, muitas vezes dependente de apoios sociais. Situação agravada com a crise de 2008 das dívidas soberanas.
Se nos momentos imediatos à crise de 2008 houve uma concentração em questões materiais ligadas à pobreza, desemprego, perda de rendimentos, também se abriu terreno para um acelerar de manifestações políticas de teor populista que embrulharam questões matérias e imateriais, recuperando as chamadas guerras culturais. A Esquerda foi aderindo a uma agenda pós-material, alimentada por populações urbanas com suficiente segurança económica, abandonando ou secundarizando as lutas pelas condições laborais e a agregação sindical, um maior equilíbrio na redistribuição da riqueza, ou a pobreza material, para se concentrar em diversas franjas identitárias e tipos de marginalização, que se manifestou em combates tais como ao “machismo tóxico”, pela identidade de género e antirracismo. No outro campo, a Direita aderiu de igual modo a agendas identitárias, numa lógica essencialmente a contrario das que caracterizam a Esquerda, através do chamado nativismo, isto é, uma concentração em valores tidos por patrióticos e que enfatizam um primado do monismo identitário, ou seja, a defesa dos valores civilizacionais judaico-cristãos, com a defesa da “família tradicional” contra a “ideologia de género”.
Ora, supunha-se que em sociedades de tradição liberal compaginada com garantias do bem-estar social (Estado Social) a agenda identitária de Direita, nacionalista, biocultural, em alguns casos racista e xenófoba, tivesse baixa adesão popular. A equação desconsiderou que ao enfatizar as questões pós-materiais, a Esquerda deixou livre uma parte do seu eleitorado, que procurou outras formas de canalização do seu ressentimento.
E isto tem tudo que ver com a revolta da Maria da Fonte, de 1846. Ocorrida num contexto de transformação e tensão política entre os valores liberais urbanos e o conservadorismo do interior, o levante popular deveu-se à proibição dos enterros no interior das igrejas por questões de saúde pública, medida interpretada como um ataque ao mundo rural e suas tradições por parte do poder político urbano, cada vez mais concentrado e contrário à autonomia dos municípios.
O ressentimento rural não é um dado a desconsiderar em Portugal, onde não chega existirem autoestradas para se afirmar a existência de um país ligado.
Assim, a pergunta que se coloca é a de saber quem fala pelo mundo rural? Numa altura em que a CDU perde (pela mais variada ordem de razões, nomeadamente as transformações socioeconómicas das populações) força eleitoral, deixando de eleger deputados no mundo rural, em que o CDS-PP enfrenta o seu desaparecimento (e por ser um partido tendencialmente classista já não elegia no interior), o mundo rural, com os seus problemas efetivos, de abandono, pobreza, precariedade laboral, torna-se terra fértil para ressentimentos.
Pensar na importância deste ressentimento rural, do apego às tradições locais, na precariedade laboral, na baixa escolaridade, nos baixos rendimentos, afigura-se mais prudente do que supor que o mundo rural que vota na direita radical o faz por mera adesão ao racismo e à xenofobia. A garantia da dignidade humana precisa ser considerada de modo universalista, integrando a consciência da necessidade de olhar para interseções de marginalidade que afetam populações racializadas, mas não opondo essa urgência a outras, porque um cidadão urbano vale o mesmo que um cidadão no mundo rural.