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Post{o} de Vigia

14.01.24

Em resultado dos desenvolvimentos da teoria crítica e da sua articulação com movimentos sociais, em que trânsitos entre academia e ativismo são parte determinante da mobilização teórica e cívica, verifica-se que conceitos como “opressão” ou “privilégio” tendem a adquirir uma rigidez que os torna incapazes de traduzir a totalidade dos fenómenos sociais, por natureza complexos e paradoxais, passando a ser mobilizados não como categorias artificiais, criadas para traduzir processos sociais, mas antes como categorias políticas, utilizadas no combate político e de transformação social. Ao se partir de uma grelha de leitura assenta no binómio opressor/oprimido, desconsidera-se os múltiplos arranjos nas interações sociais, para enfatizar um programa de reprogramação social que vai além da evidente necessidade de combater e reverter determinados arranjos sociais (serão, efetivamente, estruturas?) que perpetuam a opressão e a desigualdade. Este processo de mobilização dos conceitos para efeitos políticos pode ser pernicioso e até contraproducente, adquirindo ganhos de causa exclusivamente no quadro daqueles que participam da luta, não tendo vocação para agregar de forma abrangente a sociedade. 

Ora, o crescimento da noção de “justiça social”, através de uma bem-intencionada agenda de correção de desigualdades sociais, muitas das quais se reproduzem geracionalmente ou incidem de modo mais fático sobre grupos racializados (por um conjunto de fatores que não são apenas de ordem dita estrutural) tem conduzido à utilização extensiva do conceito de “privilégio”, o que, acredito, tenderá para enfatizar uma tensão social e política desvantajosa, afastando muitas pessoas da causa da justiça social. Isto porque o termo “privilégio” passou a incluir não apenas direitos especiais, situações minoritárias de poder, riqueza e prosperidade, para incluir toda e qualquer circunstância em que uma pessoa não tenha uma “desvantagem”, levando as pessoas a assimilar que são privilegiadas, ou a ser acusadas de tal, sem o ser.

O problema é que esse modelo de leitura social não contribui para destacar as dificuldades efetivas enfrentadas pelos menos favorecidos, apenas visa oferecer uma oportunidade para canalizarem o seu ressentimento, para obterem schadenfreude, uma satisfação ao apontarem o dedo àqueles que estão em melhores condições do que eles, mas que não deveriam ser classificados, por esse mero facto, como “privilegiados”. Com efeito, existe uma diferença concreta e material, entre a minoria de privilegiados, que são os milionários, proprietários das grandes fortunas e multinacionais, os decisores políticos, e aqueles aos quais chamamos de "privilegiados", que batalham para se manterem na classe média. Estes últimos, ao serem acusados de não "verificar os seus privilégios", podem sentir-se ressentidos. 

Grosso modo, o termo, como é mobilizado atualmente, carrega um peso de culpa que não promove o entendimento mútuo, pelo que se afigura fundamental reformular a terminologia se quisermos estabelecer uma luta abrangente, que inclua um apoio generalizado e contrarie a tendência polarizadora e de tensão entre ressentimentos. Desse modo, é necessário transferir o foco para as “desvantagens”, pois essa mudança não se trata apenas de uma questão de semântica, mas sim de uma abordagem que visa uma análise mais abrangente dos fenómenos sociais e um enfoque concreto nas circunstâncias de, repito, desvantagens experienciadas por sujeitos face a outros, em razão de identificação racial, de género, orientação sexual, condição física e motora, entre outras.

No entanto, ao adotar uma abordagem centrada nas desvantagens, entendendo que isso não é uma mera questão de semântica, mas uma mudança fundamental na abordagem,  teremos a oportunidade de promover uma compreensão mais profunda dos obstáculos que as pessoas enfrentam em diferentes contextos sociais, ao invés de se transferir a tónica para aqueles que seriam culpados pela sua situação de privilégio, situação essa que muitas vezes é experimentada de modo diferente, em razão das circunstâncias sociais e económicas de cada sujeito. 

Ao colocar o foco sobre as desvantagens experimentadas pelos sujeitos, transferindo o olhar para as dificuldades materiais e intersecionais dos sujeitos, viabiliza-se um diálogo mais inclusivo, menos propenso à polarização potencial, gerada pelo enfoque no binómio opressor/oprimido. Por isso, estou em desacordo com a ideia de que “o privilégio é não ter que pensar sobre como a sua identidade afeta a sua vida diariamente." Isso não é privilégio, é não ser afetado por uma desvantagem, porque a pessoa que não tem de pensar sobre como a sua identidade afeta a sua vida diariamente, pode bem ter de pensar sobre como vai pagar a prestação da casa e colocar comida na mesa. Vamos pedir-lhe que verifique os seus privilégios ou vamos pedir-lhe que participe de uma luta por uma justiça social que a afeta, dando a conhecer circunstâncias em que outras pessoas são afetadas de forma ainda mais profunda?

10.01.24

A ciência moderna, inspirada no Iluminismo, baseava-se na crença de que a razão humana é capaz de transcender os limites da subjetividade e alcançar a verdade absoluta. Essa crença baseava-se na ideia de que os métodos científicos rigorosos, como a observação, a experimentação e a inferência, são capazes de produzir conhecimento objetivo e universal.

O pós-modernismo, por outro lado, questiona essa crença. Para os pós-modernos, a subjetividade do sujeito-cientista é inescapável. Isso significa que todo o conhecimento científico é, inevitavelmente, influenciado pelos valores, crenças e interesses do pesquisador.

Essa constatação leva a uma mudança de paradigma. Se o conhecimento é subjetivo, então não há como separar a ciência da política. A ciência pós-moderna, portanto, assume uma postura militante, com o objetivo de transformar a realidade de acordo com os valores e interesses do cientista.

Com efeito, a ciência pós-moderna pode ser vista como uma resposta à crise da objetividade de meados do século XX, tendo por base fatores como (i) o reconhecimento de que a ciência é uma atividade humana, e que, como tal, está sujeita aos mesmos vieses e preconceitos que qualquer outra atividade, (ii) o desenvolvimento de novas formas de conhecimento, como as ciências sociais e as ciências cognitivas, que desafiam a ideia de que a ciência é uma forma de conhecimento superior, (iii) o uso da ciência para justificar agendas políticas e ideológicas, o que coloca em dúvida a sua neutralidade.

Vale reconhecer que a ciência pós-moderna oferece uma perspetiva diferente sobre a ciência, postulando a subjetividade do conhecimento científico, mas não a vendo como um problema. Pelo contrário, vê a subjetividade como uma oportunidade para tornar a ciência mais inclusiva, através da presença de perspetivas de grupos considerados marginalizados e oprimidos, e de outras ontologias mais tradicionais-espirituais, bem como uma ferramenta capaz de transformar estruturas de opressão social, sendo que a ciência deve ser usada para promover a justiça social e o bem-estar humano.

Por outro lado, esta postura metodológica conduz a um relativismo tendencialmente exacerbado, donde o conhecimento é inexistente e a ciência uma falácia, pelo que qualquer texto, particularmente de grupos tidos por oprimidos, deve ser tomado como ciência. Isto é um desafio ao método clássico de aquisição de conhecimento, colocando em causa a própria produção científica, dado que se tudo é ciência, consequentemente nada é ciência. Isto é, esvazia-se a noção consensual de conhecimento científico.

Ora, ao aliar o pós-modernismo ao ativismo/militância, o cientista passa a produzir um conhecimento engajado, que é pouco aberto à revisão e à crítica, uma vez que se configura como um programa político manifestado a coberto de cientificidade por via de universidades e publicações científicas. 

11.12.23

Vivemos um tempo em que a ciência é sobretudo um ato político. Qualquer olhar situado, contextualizado, mas não menos crítico, sobre factos e personagens históricas é desconsiderado, em favor de uma polarização entre os elogios da poeira do nacionalismo e a crítica feroz de quem quer passar sobre a história a vassoura moral. Se a primeira peca por desconsiderar que a história não é linear, e que vozes discordantes da normalidade da época eram ouvidas, que a crítica pode bem ser construtiva e que as tradições e a memória história são uma invenção (ou para usar um bom termo de Triaud, “o passado [é] composto”), a segunda postura é marcada por um quadro teórico em ascendência nas universidades do mundo ocidental, que detém uma vocação ideológica de “teoria final”. Trata-se de olhares antagónicos e pouco prolíferos, considerando que a história é um tecido intricado, onde cada fio representa uma perspetiva única e muitas vezes contraditória, implicando um reconhecimento da diversidade de perspetivas históricas a fim de produzir-se uma compreensão mais completa e justa do passado.

Isto a propósito da astrónoma Mia de los Reyes, do Amherst College no Massachusetts, que pretende entrar com um processo junto da União Astronómica Internacional para retirar o nome de Fernão de Magalhães das galáxias-satélites anãs na Via Láctea, conhecidas por “Nuvens de Magalhães”. A sua justificação é que se trata de uma homenagem a um "colonialista, traficante de escravos e assassino".

Observemos o mérito da proposta. Em primeiro lugar, as homenagens desta natureza refletem um consenso político e social de um tempo. Tendo presente que, como escreveu Hartley, “o passado é um país estrangeiro, lá faziam-se as coisas de forma diferente”, é aceitável que à luz dos nossos valores atuais se revejam determinadas homenagens, seja por via de estátuas, seja por Via Látea. Nesse sentido, havendo um consenso, é possível e não traz nada de mal ao mundo, que as ditas nuvens recebam outro apelido, ou uma designação neutra, conquanto se tenha presente que tal escolha não pode refletir uma visão política a contrario, isto é, de ajuste de contas com a história, sob pena de receber descrédito em tempo futuro.

Posto isto, convém ter presente as afirmações de Mia de los Reyes, as quais denotam de forma evidente um olhar politizado sobre a história, enquanto seleção de propostas teóricas de um quadro mais alargado da Teoria Crítica, alicerçada sobre uma visão persecutória e reformuladora da história a partir de uma leitura linear e maniqueísta dos acontecimentos, de inspiração pós-marxista, numa dialética pós-material entre “opressores e oprimidos”. Isto porque considerar Fernão de Magalhães “colonialista” implica um olhar – usando um termo de Danto – de “alinhamento retrospetivo”, em que se compõe o passado a partir do conhecimento do presente, desconsiderando, ainda, que o sufixo “ista” se refere a uma posição ideológica que Fernão de Magalhães teria em favor da posse de territórios através de colónias. Ora, à época, o empreendimento marítimo era de expansão de rotas comerciais. Em segundo lugar, a adjetivação como “traficante de escravos” é uma acusação com pouca sustentação, já que existem poucas ou nenhumas evidências do envolvimento de Fernão de Magalhães no tráfico de pessoas para efeitos de escravatura. Terceiro, a designação como “assassino” presumivelmente refere-se aos conflitos vividos nas Filipas (Batalha de Mactan) que resultaram na sua morte. A avaliação desses conflitos é pantanosa, mas podemos tomar por boa que existe uma espécie de culpa moral porque Fernão de Magalhães conduzia expedições a territórios habitados e que os confrontos com habitantes locais são produto de uma investida exógena, portanto, ilegítima.

Assim, como avaliação da proposta, é possível reconhecer mérito, tendo por base o reconhecimento de que vivemos um contexto de necessária avaliação crítica da história, donde não parece despicienda uma renomeação das nuvens com um nome mais consensual como por exemplo Nuvens Mandela, ou um nome neutro, como Nuvens Púrpura.

A proposta de renomeação, quando despojada de uma abordagem ideológica, levanta a questão fundamental de saber como devemos lidar com as homenagens a figuras do passado à luz dos valores contemporâneos. Todavia, a forma como a astrónoma fundamenta o seu pedido reflete um olhar sobre a história de natureza persecutória, revisionista e ideológica, que desmerece a proposta e reforça a polarização social. Este modus operandi só é percebido como meritório dentro – permitam-me a metáfora de contexto – de uma nuvem que paira sobre segmentos dos campus universitários para quem os novos “bens de luxo” são as medidas que visam purificar a sociedade, numa nova forma de ajustes de contas com a história e reprogramação social que refletem um novo “despertar religioso”. É uma pena, porque obrigam a sociedade a jogar “fora o bebé com a água do banho”, em nada contribuindo, portanto, para uma saudável reflexão, discussão e compreensão matizada do passado sem perder de vista um quadro ético humanista.

11.11.23

Comumente considerado um produto de beleza feminina, símbolo de sensualidade e feminilidade, foi, ao mesmo tempo, durante os dois últimos séculos, um símbolo de empoderamento feminino, sobretudo nas suas cores vibrantes que desafiavam a ideia de recato. No século XIX, por exemplo, as sufragistas usavam batom vermelho para chamar a atenção para a sua causa. Elas acreditavam que o batom era uma forma de desafiar os estereótipos sobre as mulheres como seres frágeis e dependentes. Contudo, os últimos anos marcaram uma viragem profunda na interpretação feminista sobre o batom. Em razão de um enquadramento teórico-ativista de inspiração pós-marxista, o batom passou a ser classificado, por largos setores do movimento feminista, como símbolo do patriarcado e da sua opressão sobre as mulheres e consequente objetificação sexual. 

Em razão desse enquadramento ideológico, emerge uma agenda feminista que determina o que deve ou não deve uma mulher fazer, vestir, aceitar sexualmente, a fim de ser uma «verdadeira» feminista, praticando uma espécie de «opressão do bem», o que em última instância não deixa de ser uma forma de opressão. 

Ora, considero que o combate ao patriarcado não é sobre alguém ditar o que as mulheres devem ou não fazer com seus corpos, mesmo que esse alguém seja uma mulher que se considera representante legítima e líder intelectual do feminismo. O combate ao patriarcado e a defesa das mulheres é sobre a liberdade de escolha, sobre a poder usar ou não usar batom, poder usar ou não usar vestidos, pode ser progressista ou conservadora, poder ser lésbica, bissexual, heterossexual ou assexual. O que implica que não devem ser pressionadas ou julgadas pelas suas escolhas. Por ninguém, sob pena de se encontrarem sob jugos paternalistas.

03.01.23

A separação entre Estado e Igreja, como processo de constituição das democracias liberais, abriu o caminho para a secularização social e o “desencantamento do mundo”. A ausência de uma religião civil nas sociedades ocidentais permitiu o surgimento de novos roteiros espirituais, tanto por via de inserção noutras comunidades religiosas convencionais, quanto através de um despertar espiritual baseado numa visão holística da espiritualidade, que a partir da individualidade liberal abriu a janela para a experiência de si mesmo como sujeito espiritual, aqui e agora, híbrido e segundo os interesses do momento. A esse despertar espiritual deu-se o nome de Nova Era. 

Ora, à margem desse despertar imaterial, ligado à experiência individual do sujeito-alma, deu-se um outro despertar político, baseado na experiência de si enquanto sujeito-opressor e sujeito-vítima, que produziu uma nova forma de religiosidade ocidental, mais intelectual, mais urbana, burguesa, que não perdeu, todavia, a condição de confissão ou comunidade espiritual. Falo do movimento woke, o qual apresenta uma estrutura similar a uma igreja cristã, contendo a culpa como mobilizadora da autoflagelação e da necessidade de expiação, uma boa nova que se apresenta como uma descoberta extraordinária e que é preciso levar aos que não a conhecem, o ímpeto de conversão paternalista, uma performance ritual coletiva, voltada às grandes marchas, e uma individual através das redes sociais, um desejo de purificação da sociedade, atitude de transcendência que vai além do clássico combate de ideias para veicular a verdade única, a presença de profetas e de um povo eleito, a existência de dogmas inquestionáveis, um sentido de pertença superior de quem está numa missão espiritual. 

Bem vistas as coisas, por mais desencantamento do mundo que tenha existido e da laicização que se sucedeu, o processo de despertar ou de reencantamento mantém todo o manual cristão, património cultural e religioso do Ocidente. Quando olhamos os movimentos políticas encontramos igual natureza confessional, com um líder messiânico (profeta), uma boa nova, um povo eleito, um sentido de missão espiritual que se traduz num combate cultural. O que difere é a natureza abrange do movimento, sociologicamente diversificado. 

Torna-se claro que o reencantamento do mundo é um processo em curso, que inclui o retorno às igrejas cristãs por via de uma agenda conservadora ligada em grande parte ao movimento populista, o movimento woke e a luta pela dignidade dos oprimidos através da purificação dos opressores, sem esquecer os mais espirituais Nova Era, voltamos exclusivamente ao individualismo espiritual e à experiência estética de reinventar-se dentro do caleidoscópio religioso do mundo. 

11.12.22

A celebração da vitória de Marrocos sobre Portugal como uma vitória dos oprimidos contra o colonialismo é um sintoma evidente do ambiente de «guerra cultural» que se vive no Ocidente. Este posicionamento, é produto de uma mudança social profunda que se iniciou, embora a passo, com o surgimento da Escola de Frankfurt e a Teoria Crítica, que defendia o dever de compromisso de transformação social pela ciência. Com este caminho programático e partindo de leituras marxistas e pós-marxistas, o binómio "opressor-oprimido" torna-se o núcleo da abordagem às dinâmicas de organização social, em que, como afirma Donald Noel (1968), os sujeitos tendem a explorar (ou até mesmo eliminar ou, em grau de menor violência, dispersar) um grupo externo (o "outro") para efeitos de benefício económico. De acordo com David Nibert, em Animal rights/human rights: entanglements of oppression and liberation, a teoria da opressão compreende os seguintes elementos: (i) dispersão, eliminação ou exploração económica do "outro", em particular pelas elites dominantes; (ii) a existência de arranjos sociais que se baseiam em tratamento opressivo, o qual tem apoio por parte do poder estatal; (iii) construção e propagação de ideias em torno da desvalorização dos oprimidos, sendo a partir deste processo que nascem as ideologias racista, sexista ou especismo; (iv) a partir deste mecanismo, o preconceito torna-se eficaz e disseminado, e desse modo a discriminação torna-se prática comum; (v) verifica-se um reforço da opressão, i.e., torna-se naturalizada ou normalizada, e com ela ostatus quo é salvaguardado. Este modelo teórico parte da doutrina de que a opressão de grupos sociais inteiros (raciais, étnicos, económicos, sexuais, etc.) tem uma natureza sistémica, não podendo ser explicado por fatores individuais, como o preconceito ou a tendência inata para a violência. No entanto, tal como o autor argumenta, a opressão é maleável, podendo alterar o seu foco, passar a incluir no sistema protegido grupos outrora oprimidos, ou reforçar a opressão.

O que isto tem a ver com o futebol? Com o crescimento da Teoria Crítica e a disseminação da teoria da opressão, cada vez mais vozes ditas silenciadas pela história, passaram a estar presentes na produção de discurso político e científico. O conceito de lugar de fala é introduzido, dando conta de que a produção discursiva detém inúmeros lugares de enunciação. Com os trânsitos ativismo-academia, sobretudo no plano estudantil, onde é mais permeável a interpretação suave e binária dos acontecimentos históricos, as lutas pela libertação dos oprimidos passaram a redesenhar a História em favor da Memória. É neste processo que se inclui a reivindicação descolonial, que procurando produzir historiografia e memória fora dos cânones etnocêntricos ocidentais, explicitando que os povos colonizados não eram povos sem história até à chegada dos europeus, mas, como sabemos, com passado cultural e civilizacional próprio e rico, e de igual modo, aceitando "deitar fora o bebé com a água do banho", ao desconsiderar (i) que os acontecimentos históricos têm uma contexto de produção, (ii) que os factos não devem ser dados a leituras ideológicas, a não ser a do aprendizado para se tornarem irrepetíveis.

Ora, quando se faz dos colonos europeus os demónios da história, faz-se uma opção ideológica, que apaga o facto de que a violência da ocupação territorial não foi uma invenção europeia colonial (e antes fosse pois teria tido um período circunscrito), que a escravatura não foi, igualmente, uma invenção europeia colonial (e antes fosse pois teria tido um período circunscrito), que muitos dos povos defendidos como oprimidos contra o opressor branco são ou foram opressores geográficos. Os povos norte-africanos foram invasores das regiões subsaarianas, com base numa guerra de expansão religiosa (jihad) de onde traziam escravos, de que podemos dar como exemplo as guerras do Califado de Sokoto e do Emirado de Ilorin sobre o Império Òyó-Yorùbá, que juntamente com a guerra de libertação do Dahomé do jugo daquele império, alimentaram o Brasil de escravos no séc. XVIII e XIX. Bem assim, precisamos ter presente que a teoria da colonialidade, proposta por Aníbal Quijano (2005) tem os seus limites. Quando as novas gerações brasileiras defendem um ódio a Portugal por causa da colonização, precisam compreender que o Brasil independente tem 200 anos, e que a sua independência foi feita, em boa medida, no sentido de garantir a continuidade do comércio de escravos, já mal visto em terras portuguesas. Não é por acaso que a independência ocorre a 7 de setembro de 1822, e somente em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, tem lugar o fim do comércio de escravos, e a escravatura é extinta somente em 1888, como último gesto de tentativa de segurar a monarquia. Não obstante os sedimentos coloniais terem prevalecido, a culpabilização ad eternum de Portugal sobre as opções políticas do Brasil, sobre a corrupção, o racismo estrutural, entre outros, é uma interpretação abusiva da teoria da colonialidade.

Acontece, portanto, que se celebra um Marrocos colonial para se odiar o Portugal colonial.

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