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Post{o} de Vigia

30.04.22

Crescemos todos a ouvir falar na luta de classes, mesmo que não tenhamos convivido com a literatura ou a militância marxista. A ideia de luta de classes integrou a nossa transição para a Democracia e o nosso constitucionalismo. Este tempo volvido, vale perguntar se a nossa experiência democrática desde o 25 de Abril configura alguma luta de classes.

Imperfeita e dispersa, em resultado do processo conturbado da sua feitura, mas também profundamente garantística e programática, a nossa Constituição traduz o projeto de harmonização ideológica que se quis para a sociedade portuguesa, tanto na sua feitura quanto nas suas revisões. Sem desconsiderar e deixar de impor os chamados “direitos de liberdade” (direitos, liberdades e garantias), i.e., os direitos herdados das revoluções liberais, marcados pela propriedade e iniciativas privadas e pela garantia da não-ingerência (dimensão negativa) do Estado na vida privada dos cidadãos, não deixou nem deixa de ser um texto constitucional que incorpora uma dimensão socializante através da inclusão dos “direitos sociais” (direitos económicos, sociais e culturais) no amplo catálogo dos direitos fundamentais, seja pela letra do texto seja por força da aplicação do princípio da natureza análoga. Isto significa uma preocupação do legislador constitucional em garantir direitos e impor deveres ao Estado além da interpretação liberal do laissez-faire, procurando garantir, à luz do princípio axiológico da dignidade da pessoa humana, direitos de igualdade, visando a correção de assimetrias, uma justiça social fática e uma equidade material. Trata-se, pois, da integração dos dois universos ideológicos em concorrência, num claro esforço de conformação e harmonização dos direitos ditos burgueses e liberais e dos direitos ditos socialistas: a liberdade e a igualdade, a liberdade na igualdade, a igualdade na liberdade.

A harmonização, naturalmente, não significa ausência de tensão. Com efeito, a adesão à globalização e ao mercado capitalista, com a necessidade de concorrência e a expansão dos bens de primeira necessidade para bens de consumo, deram impulso aos valores liberais-burgueses. No entanto, o espírito constitucional e a garantia legisladora dos vários anos do Partido Socialista (mas não só) sob a pressão sindical e da sua Esquerda, procuraram equilibrar a balança, oferecendo uma almofada de direitos aos cidadãos.

No entanto, não obstante o esforço da Esquerda, com particular enfoque no Partido Comunista Português (PCP) na valorização de uma busca igualizante da sociedade por via da ideologia da luta de classes, o bem-estar social e a sociedade de consumo geraram uma elasticidade social onde a noção de luta de classes derrapou para a vaguidade – a luta de classes tornou-se irrealizável quando os cidadãos procuraram a ascensão social e, por essa via, a recusa da permanência numa classe “abaixo”.

Contudo, as crises económicas e a pandemia derrogaram as perspetivas de que o crescimento económico, o bem-estar social, e o sucesso individual, seriam eternamente ascendentes. Uma nova vaga de descamisados da globalização emergiu em todos os lugares. No entanto, eles não são mais parte de uma luta de classes clássica, mas antes integram um sentimento de insatisfação e abandono que se volta mais para as elites, o poder político e os imigrantes (na verdade as franjas mais vulneráveis e atingidas pelas crises) do que para os “detentores dos meios de produção”. É, portanto, uma classe trabalhadora (não necessariamente a trabalhar e, muito menos, em situação segura) que se vê como abandonada, desprotegida e ansiosa pelo bem-estar capitalista, que entra em combate com outras microclasses: os políticos, os imigrantes, os intelectuais, não numa busca por redistribuir riqueza e alcançar uma igualdade igualitária, mas antes visando desmantelar um sistema que os deixou ficar mal.

Paralelamente, vemos emergir um novo partido de pendor libertário e que integra, ex-novo, a exclusividade da agenda liberal burguesa, sem uma política de costumes evidente que a da não-interferência do Estado, deixando a cada qual o direito de ser, ao mesmo tempo que, nesse mesmo espírito, advoga a crença nas mais-valias do mercado à solta e no Estado mínimo na construção de uma sociedade mais rica. Sem garantias claras sobre direitos sociais, é um programa de conformação social de que a cada um é dada a oportunidade de fazer a sua sorte ou imergir com o seu fado.

Ora, isto leva-nos, novamente, à dúvida sobre a luta de classes. Entre um partido clássico de um operariado em desaparecimento, mas seguro ainda na força sindical, um partido dos revoltas com a globalização e o multiculturalismo (e alguns com a democracia), um partido agora sim de classe, dos “detentores dos meios de produção”, dois partidos da social-democracia, isto é da compaginação entre direitos de liberdade e direitos sociais, e outros partidos de causas diversas, é a luta de classes a teoria que melhor traduz o campo da política portuguesa ou vivemos uma natural tensão entre agendas, programas ideológicos e interesses concretos, inerentes ao parlamentarismo e à vida político-social de um modo geral? Não temos respostas claras. Os próximos quase 6 anos de maioria absoluta e a conjuntura internacional ditarão os rumos. Vale a pena, contudo, refletir sobre ideias clássicas e lutas coevas.

Cólofon

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