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Post{o} de Vigia

11.04.24


A contemporaneidade é caracterizada por uma notável hipersensibilidade no tecido social, fenómeno este amplamente influenciado por correntes de pensamento pós-modernistas que, adotando o princípio de "se sinto, logo é", conferem primazia à subjetividade das experiências individuais. Nesse contexto, o conceito de microagressões transcendeu o âmbito meramente analítico para se estabelecer como um vetor de mobilização social, evidenciando a complexidade das dinâmicas de interação social e o potencial para o surgimento de tensões baseadas na percepção de ofensas, muitas vezes subtis ou não intencionais. Esta ênfase nas experiências subjetivas de ofensa e discriminação reflete uma mudança significativa no discurso público e nas práticas sociais, suscitando debates acerca dos limites da liberdade de expressão e do respeito à diversidade de perspectivas e identidades.

No entanto, esse aumento na sensibilidade às microagressões e às formas variadas de expressão da ofensa ocorre paradoxalmente num momento em que se observa um esvaziamento da sensibilidade e da empatia em outras esferas da experiência humana. Um exemplo emblemático dessa dicotomia é a prática de turismo em áreas marcadas por conflitos e desafios humanitários significativos, como a perigosa rota de migração do estreito de Darién, que liga a Colômbia ao Panamá. A procura por experiências "autênticas" ou "aventureiras" em contextos de extrema vulnerabilidade expõe um desligamento preocupante entre a sensibilidade exacerbada a certas formas de ofensa e a apatia diante do sofrimento e das adversidades enfrentadas por populações em situação de risco.

A coexistência de uma hipersensibilidade em relação às microagressões com uma aparente insensibilidade diante de dilemas humanitários críticos lança luz sobre as intrincadas contradições que permeiam as sociedades contemporâneas. A atenção minuciosa às microagressões tem o mérito de expor mecanismos subtis de marginalização e segregação, desafiando e deslegitimando comportamentos e atitudes que, até então, eram tacitamente aceitos ou ignorados no tecido social. Este processo de conscientização é crucial para o reconhecimento e a valorização das múltiplas identidades e experiências que compõem o mosaico social, contribuindo para a construção de espaços mais inclusivos e respeitosos.

Contudo, esta mesma vigilância às nuances da interação social pode degenerar numa forma de controlo social excessivamente zeloso, que se aproxima da censura moral e limita a diversidade de expressões e opiniões. Tal dinâmica acaba por reproduzir o padrão de exclusão que originalmente pretendia combater, criando um ambiente de constante auto-vigilância e de temor diante da possibilidade de transgressão das normas de correção política estabelecidas.

Poderemos estar diante de um confronto entre sensibilidades seletivas e mediaticamente construídas. Não será de desconsiderar que uma figura progressista da nossa sociedade, não há muito tempo teceu um comentário nas redes sociais sobre um taxista branco e português, dizendo que "cheirava a trabalhador português", para desqualificar o mesmo, enquanto escrevia em defesa dos imigrantes exploradores em serviços com a Bolt e a Uber. Este "progressismo fashion", que oscila ao sabor das pautas mediáticas e sociais mais palatáveis, ilustra um dos aspectos mais problemáticos do movimento woke quando universalizado, desprovido de uma reflexão crítica e aprofundada. Tal abordagem superficial ao ativismo corre o risco de minar a solidariedade genuína e a empatia, elementos essenciais para a superação coletiva de desafios sociais e para a promoção de uma verdadeira transformação social.

11.12.23

Vivemos um tempo em que a ciência é sobretudo um ato político. Qualquer olhar situado, contextualizado, mas não menos crítico, sobre factos e personagens históricas é desconsiderado, em favor de uma polarização entre os elogios da poeira do nacionalismo e a crítica feroz de quem quer passar sobre a história a vassoura moral. Se a primeira peca por desconsiderar que a história não é linear, e que vozes discordantes da normalidade da época eram ouvidas, que a crítica pode bem ser construtiva e que as tradições e a memória história são uma invenção (ou para usar um bom termo de Triaud, “o passado [é] composto”), a segunda postura é marcada por um quadro teórico em ascendência nas universidades do mundo ocidental, que detém uma vocação ideológica de “teoria final”. Trata-se de olhares antagónicos e pouco prolíferos, considerando que a história é um tecido intricado, onde cada fio representa uma perspetiva única e muitas vezes contraditória, implicando um reconhecimento da diversidade de perspetivas históricas a fim de produzir-se uma compreensão mais completa e justa do passado.

Isto a propósito da astrónoma Mia de los Reyes, do Amherst College no Massachusetts, que pretende entrar com um processo junto da União Astronómica Internacional para retirar o nome de Fernão de Magalhães das galáxias-satélites anãs na Via Láctea, conhecidas por “Nuvens de Magalhães”. A sua justificação é que se trata de uma homenagem a um "colonialista, traficante de escravos e assassino".

Observemos o mérito da proposta. Em primeiro lugar, as homenagens desta natureza refletem um consenso político e social de um tempo. Tendo presente que, como escreveu Hartley, “o passado é um país estrangeiro, lá faziam-se as coisas de forma diferente”, é aceitável que à luz dos nossos valores atuais se revejam determinadas homenagens, seja por via de estátuas, seja por Via Látea. Nesse sentido, havendo um consenso, é possível e não traz nada de mal ao mundo, que as ditas nuvens recebam outro apelido, ou uma designação neutra, conquanto se tenha presente que tal escolha não pode refletir uma visão política a contrario, isto é, de ajuste de contas com a história, sob pena de receber descrédito em tempo futuro.

Posto isto, convém ter presente as afirmações de Mia de los Reyes, as quais denotam de forma evidente um olhar politizado sobre a história, enquanto seleção de propostas teóricas de um quadro mais alargado da Teoria Crítica, alicerçada sobre uma visão persecutória e reformuladora da história a partir de uma leitura linear e maniqueísta dos acontecimentos, de inspiração pós-marxista, numa dialética pós-material entre “opressores e oprimidos”. Isto porque considerar Fernão de Magalhães “colonialista” implica um olhar – usando um termo de Danto – de “alinhamento retrospetivo”, em que se compõe o passado a partir do conhecimento do presente, desconsiderando, ainda, que o sufixo “ista” se refere a uma posição ideológica que Fernão de Magalhães teria em favor da posse de territórios através de colónias. Ora, à época, o empreendimento marítimo era de expansão de rotas comerciais. Em segundo lugar, a adjetivação como “traficante de escravos” é uma acusação com pouca sustentação, já que existem poucas ou nenhumas evidências do envolvimento de Fernão de Magalhães no tráfico de pessoas para efeitos de escravatura. Terceiro, a designação como “assassino” presumivelmente refere-se aos conflitos vividos nas Filipas (Batalha de Mactan) que resultaram na sua morte. A avaliação desses conflitos é pantanosa, mas podemos tomar por boa que existe uma espécie de culpa moral porque Fernão de Magalhães conduzia expedições a territórios habitados e que os confrontos com habitantes locais são produto de uma investida exógena, portanto, ilegítima.

Assim, como avaliação da proposta, é possível reconhecer mérito, tendo por base o reconhecimento de que vivemos um contexto de necessária avaliação crítica da história, donde não parece despicienda uma renomeação das nuvens com um nome mais consensual como por exemplo Nuvens Mandela, ou um nome neutro, como Nuvens Púrpura.

A proposta de renomeação, quando despojada de uma abordagem ideológica, levanta a questão fundamental de saber como devemos lidar com as homenagens a figuras do passado à luz dos valores contemporâneos. Todavia, a forma como a astrónoma fundamenta o seu pedido reflete um olhar sobre a história de natureza persecutória, revisionista e ideológica, que desmerece a proposta e reforça a polarização social. Este modus operandi só é percebido como meritório dentro – permitam-me a metáfora de contexto – de uma nuvem que paira sobre segmentos dos campus universitários para quem os novos “bens de luxo” são as medidas que visam purificar a sociedade, numa nova forma de ajustes de contas com a história e reprogramação social que refletem um novo “despertar religioso”. É uma pena, porque obrigam a sociedade a jogar “fora o bebé com a água do banho”, em nada contribuindo, portanto, para uma saudável reflexão, discussão e compreensão matizada do passado sem perder de vista um quadro ético humanista.

11.12.23

Talvez não tenham notado, por não ter uma feição belicista, mas vivemos um período revolucionário, que lembra o famoso “debate” entre Thomas Paine e Edmund Burke, o qual convoca a questão de se saber se a mudança social deve ser repentina e de corte total com o passado, ou gradual, respeitando de onde viemos e o que foi construído. Por razões teórico-ideológicas, o tempo que vivemos é o da vitória do corte abrupto, da rutura em direção ao ex-novo. Há um admirável mundo novo a construir, que não é o “amanhã cantante” da sociedade igualitarista, sem classes, nem diferenças, mas é, fazendo uso de uma expressão de Fernando Pessoa, “outra coisa ainda”, que é a sociedade expurgada da mácula do passado. A história é, portanto, espaço de revisão, reescrita, reajustamento, purga. No novo mundo a construir só cabem os puros, não de imaculado coração, mas aqueles que foram vítimas da história, e aqueles que se derem como cordeiro sacrifical, purificados pela expiação dos pecados dos quais não escapam sem atos de contrição.

Isto a propósito da lei que entrará em vigor no Rio de Janeiro que pretende expurgar a cidade de quaisquer elementos materiais que homenagem pessoas que tenham um passado direto ou indireto ligado à escravatura, de entre eles o busto do Padre António Vieira oferecida pela Câmara Municipal de Lisboa, em 2011, e que se encontra na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

A figura do Padre António Vieira é uma figura controversa, não cabendo aqui realizar uma dissecação sobre a mesma. Vale dizer que se trata de uma personagem histórica de grande relevo intelectual e que, como qualquer intelectual do seu tempo, cheia de contradições. Grande defensor das comunidades indígenas brasileiras, António Vieira era um jesuíta progressista, alguém que procurou equilibrar as instituições do seu tempo com mudanças sociais humanistas. Se não é mentira que António Vieira pregou aos escravos a submissão e aceitação da sua condição, em especial nos sermões aos “pretos da Ethyopia”, não é menos verdade que as suas ideias progressistas sobre a dignidade dos povos indígenas e dos escravos, quando se confrontou com a crueldade de tratamento, valeram-lhe a condenação e prisão pela Inquisição e a perseguição até ao fim da vida. Falamos, evidentemente, de um progressismo de época, que em nome da igualdade racial e da dignidade humana, fazia uso da conversão ao cristianismo como instrumento de luta social.

Isto significa, portanto, que o Padre António Vieira é uma das figuras mais polémicas da história portuguesa, podendo ser objeto de diferentes leituras, conforme a benevolência ou o radicalismo que se pretenda imprimir ao olhar sobre a sua vida.

Felizmente, e ao arrepio do tempo, a solução encontrada para tais elementos topográficos, i.e., a sua transferência para um ambiente museológico, acompanhadas da devida contextualização sobre as obras e as personagens homenageadas, é de uma enorme sensatez. A solução permite (i) preservar património, (ii) que este seja visitável e compreendido através de um enquadramento, e (iii) que no futuro possa ser objeto de recuperação, se assim a sociedade do amanhã o entender. E isto é de uma sensatez extraordinária em face da vigência de uma crença social, política e teórica de que descobrimos a verdade final, o último evangelho da teoria social, que mais não tem feito que contribuir para a polarização social e para fomentar um puritanismo de rede social.

16.05.23

Da curiosa combinação entre Estado de Bem-Estar Social e sensação de abandono por parte dos “descamisados” da globalização, emergiram questões pós-materiais em torno de ressentimentos, identidades e valores civilizacionais, tais como as questões raciais e as lutas antirracistas, que, por viés político-teórico, se tornaram lutas contra o capitalismo, os direitos e as identidades sexuais, e o papel da moral religiosa e dos valores conservadores num mundo global. Entre o combate às formas de opressão e a luta pela salvaguarda dos valores cristãos como normativos, nascem as chamadas “guerras culturais”.

Inevitavelmente, estas têm produzido efeitos no ambiente político, estando intimamente ligadas à erosão do consenso democrático (a ideia de “chão comum”) e à polarização do campo político em vários países, como os Estados Unidos, onde empurram o Partido Democrata para a Esquerda e o Partido Republicano para a Direita, gerando um esvaziamento dos vasos comunicantes, dando origem, então, a uma lógica de blocos voltados para si mesmos e arregimentados em torno da sua superioridade moral, numa verdadeira batalha espiritual.

Se é relevante refletir sobre os efeitos políticos destas opções bipolares e sobre a transformação do campo político em espaço de disputa imaterial, não é de menor importância debater o papel dos meios de comunicação social na produção desta polarização. O impacto das redes sociais é conhecido, e vários estudos mostram que elas tendem a ampliar e aprofundar as divisões existentes na sociedade, ao mesmo tempo em que criam novas polarizações, revelando-se plataformas de disseminação de notícias falsas e teorias de conspiração. Da mesma forma, mostram que a exposição a opiniões divergentes não produz o efeito de reflexão, mas antes agudiza as posições políticas e conceções iniciais.

No entanto, a imprensa não é imune ao efeito da polarização. Pelo contrário, reconhecendo o impacto das notícias, títulos e opiniões que despertam o conflito, enfatizam pequenos acontecimentos e apostam em cronistas que possam gerar polémica, sinónimo de engagement nas redes sociais. É sintoma disso o número de vezes que microeventos são partilhados nas redes sociais dos media tradicionais, uma vez que produzem forte debate e cliques. Um exemplo recente é o da professora obrigada a pedir desculpa a alunas por dizer “bom dia, meninas” numa escola de raparigas. Este evento, de pequena escala, ganhou grande expressão pelo eco dado na imprensa, trazendo novamente à discussão a questão da identidade de género. No entanto, a forma como as notícias são construídas, com ênfase na superficialidade das questões, impede uma discussão de fundo sobre o assunto, apenas potenciando a tomada de posição para um dos lados – a apologia do direito à desconstrução da identidade, mecanismo de opressão social versus a rejeição da identidade de gênero como um produto ideológico. Esta simplificação discursiva e política impede um debate mais profundo sobre o lugar que a discussão ocupa na escola, na família, bem como o de saber em que faixa etária uma criança está preparada para conscientemente identificar-se com um gênero além da determinação biológica, sem implicar a negação do direito à identidade nem aceitar como dado-adquirido que essa identificação é definitiva.

Revela-se necessário reconhecer o papel que os meios de comunicação desempenham na ampliação e aprofundamento das divisões existentes na sociedade. Esse fenómeno de “sensacionalismo cultural”, e a polarização que ele gera exige uma abordagem cuidadosa e responsável por parte dos meios de comunicação, de modo a gerar um debate mais coerente e fundamentado na sociedade. Afinal, como escreveu Roger Judrin, “as pessoas pensam por si, aquilo que os media lhes ditam”.

21.03.23

A obra de Enid Blyton marcou a primeira metade do século XX, em particular com as séries "Os Cinco" e "O Clube dos Sete", obras de literatura infantil de aventuras que inspiraram outras gerações seguintes, como "O clube das chaves" ou "Uma Aventura". A obra de Blyton não passou ao lado de críticas, inclusive na época, pelas personagens estereotipadas, que reforçavam estereótipos de género e de classe social, pelo excesso de clichés sociais, bem como por um conservadorismo moral, político e educacional, que reforçava uma ordem tradicionalista e patriarcal, manifestas na defesa da obediência e da disciplina. Apesar disso, a obra de Blyton sobreviveu até hoje, com múltiplas edições em todo o mundo.

No entanto, sabe-se que em Inglaterra, no Condado de Devon, inúmeras bibliotecas estão a esconder a obra da autora, em especial as versões mais antigas, sendo necessário solicitar os mesmos, acompanhados de um aviso de linguagem potencialmente ofensiva. Somos, então, convocados para um debate em curso, sobre a pertinência de se proibir ou censurar livros e obras literárias. O argumento central, a favor dessa política de cancelamento literário, baseia-se na perpetuação de estereótipos de género, racismo, xenofobia, gordofobia e preconceitos de diversa ordem, que seriam legitimados pela literatura e que teriam um impacto negativo nas crianças. O argumento não é despiciente, mas, no meu entendimento, padece de dois vícios de substância: primeiro, integra uma luta cultural e espiritual de purificação da sociedade, que visa transformar a mesma por decreto e por censura, acreditando que a mudança nas mentalidades, em direção a uma sociedade mais inclusiva, se faz por campanhas de proibição, censura e cancelamento, sem considerar que essa atitude alimenta uma reação contrária; em segundo lugar, tem o vício de – ao impedir o acesso à informação e à obra – de agir sobre a sociedade de um modo paternalista, infantilizando os demais concidadãos, tomando-os por incapazes de ter um olhar crítico sobre a realidade e a literatura, e, no plano educativo, por fomentar uma geração de crianças criadas numa redoma moral, como “flores de estufa” ou snow flake, julgando que as impedir de ler palavras como “gordo”,  “negro”, ou outras, as educa para a inclusão, quando na verdade, face à realidade social muito mais complexa com que têm de lidar, porque são confrontados com um mundo onde estereótipos e preconceitos prevalecem, se encontram inaptos para a sobrevivência, sendo encaminhados para a angústia e a incapacidade de lidar com desafios.

É curioso, portanto, que o ímpeto moralizador social não raras vezes se faça acompanhar por um modelo educacional permissivo e helicóptero, em que os pais/encarregados de educação deixam de assumir um papel ativo na educação das crianças, estabelecendo regras e preparando-as para os desafios de uma sociedade onde os valores são plurais e conflituantes, onde não basta pedir para ter, para se empenharem numa mudança social por decreto e por mecanismos censórios.

Nesse sentido, parece-me mais útil continuar a permitir o acesso à obra de Enid Blyton e outras, sem censura, acompanhando a leitura de uma contextualização (sobre um período com outras normas e valores) e de uma discussão sobre o carácter problemático de determinados elementos, sem deixar de apreciar o valor literário. Todavia, este parece ser um caminho mais complexo, que exige maior empenho educativo. É muito mais fácil infantilizar os sujeitos e censurar a literatura.

03.01.23

A separação entre Estado e Igreja, como processo de constituição das democracias liberais, abriu o caminho para a secularização social e o “desencantamento do mundo”. A ausência de uma religião civil nas sociedades ocidentais permitiu o surgimento de novos roteiros espirituais, tanto por via de inserção noutras comunidades religiosas convencionais, quanto através de um despertar espiritual baseado numa visão holística da espiritualidade, que a partir da individualidade liberal abriu a janela para a experiência de si mesmo como sujeito espiritual, aqui e agora, híbrido e segundo os interesses do momento. A esse despertar espiritual deu-se o nome de Nova Era. 

Ora, à margem desse despertar imaterial, ligado à experiência individual do sujeito-alma, deu-se um outro despertar político, baseado na experiência de si enquanto sujeito-opressor e sujeito-vítima, que produziu uma nova forma de religiosidade ocidental, mais intelectual, mais urbana, burguesa, que não perdeu, todavia, a condição de confissão ou comunidade espiritual. Falo do movimento woke, o qual apresenta uma estrutura similar a uma igreja cristã, contendo a culpa como mobilizadora da autoflagelação e da necessidade de expiação, uma boa nova que se apresenta como uma descoberta extraordinária e que é preciso levar aos que não a conhecem, o ímpeto de conversão paternalista, uma performance ritual coletiva, voltada às grandes marchas, e uma individual através das redes sociais, um desejo de purificação da sociedade, atitude de transcendência que vai além do clássico combate de ideias para veicular a verdade única, a presença de profetas e de um povo eleito, a existência de dogmas inquestionáveis, um sentido de pertença superior de quem está numa missão espiritual. 

Bem vistas as coisas, por mais desencantamento do mundo que tenha existido e da laicização que se sucedeu, o processo de despertar ou de reencantamento mantém todo o manual cristão, património cultural e religioso do Ocidente. Quando olhamos os movimentos políticas encontramos igual natureza confessional, com um líder messiânico (profeta), uma boa nova, um povo eleito, um sentido de missão espiritual que se traduz num combate cultural. O que difere é a natureza abrange do movimento, sociologicamente diversificado. 

Torna-se claro que o reencantamento do mundo é um processo em curso, que inclui o retorno às igrejas cristãs por via de uma agenda conservadora ligada em grande parte ao movimento populista, o movimento woke e a luta pela dignidade dos oprimidos através da purificação dos opressores, sem esquecer os mais espirituais Nova Era, voltamos exclusivamente ao individualismo espiritual e à experiência estética de reinventar-se dentro do caleidoscópio religioso do mundo. 

12.12.20

O poema recitado por Amanda Gorman na cerimónia da tomada de posse do presidente estadunidense Joe Biden estava previsto ser traduzido, para holandês, pela escritora Marieke Lucas Rijneveld, com o aval da primeira. No entanto, um artigo de Janice Deul, jornalista e ativista negra, no jornal Volkskrant, fez com que Marieke desistisse, face à onda de críticas. Janice Deul argumenta que a tradução do poema deveria caber a "um artista local, jovem, uma mulher assumidamente Negra”. Eventualmente ela mesma, Janice Deul.

É importante ter presente, claro, que tal como Doris Sommer e outros autores mostram, há sentimentos e experiências que estão racialmente circunscritas. Mas mesmo Sommer, autora branca, é capaz de traduzir e inscrever as circunstâncias negras na literatura. É por isso que queiramos ou não, a reação de Deul e afins é populismo de esquerda. Ao radicalizar as questões raciais esvazia-as de conteúdo e impede a simpatia de fora. Ironicamente, o que os movimentos de militância racial radical fazem é apropriar-se de um elemento cultural judaico, a "pureza", para construir o seu discurso e imaginário populista racial. Não é por acaso que a sua narrativa sobre "apropriação cultural" é a versão inversa da autenticidade do nacionalismo. Tanto uma quanto a outra desconsideram o mais elementar aspeto das culturas: o hibridismo. Acresce ainda que uma parte significativa das culturas africanas sempre observaram os elementos culturais exógenos pela ótica da mais-valia, da eficácia simbólica e efetiva, estando livres da "pureza", da autenticidade, categorias próprias do pensamento judaico-cristão.

13.06.20

Parece-me que entrámos, definitivamente, na reprodução dos confrontos vigentes no Brasil, onde não há possibilidade para o bom-senso e o equilíbrio. Ou se está de um lado da barricada ou do outro. Isto está refletido neste debate em torno da estatuária, onde encontramos a glorificação absoluta dos símbolos pátrios, sem qualquer sentido crítico, apenas pela exaltação da memória nacionalista, e do outro lado a rejeição do direito aos símbolos nacionais, como se um país fosse somente uma sociedade emergida do contrato social, sem uma história e uma identidade. 

Neste jogo de surdos, faz-se um julgamento da história a partir dos padrões coevos, como se cada época não tivesse o seu próprio contexto e à luz do qual é honesto avaliar as atitudes. Isto não significa, contudo, desculpabilizar as atrocidades da escravatura e do colonialismo, simplesmente porque o comércio de escravos era "normal", até porque não se aplica, felizmente, a mesma receia ao nazismo. 

Posto isto, no caso da estátua do Pe. António Vieira parece-me evidente que a mesma invoca e glorifica uma figura com várias esquinas, que balanceou entre o humanismo e o salvacionismo colonialista. Acresce que a estátua comporta toda uma ideologia nacionalista do "bom colonizador", com os índios aos pés, agradecidos pelo homem que lhes "salvou a alma" da perdição "selvagem". Por isso, sim, enquanto património que reproduz uma ideologia ela é passível de crítica. No entanto, a vandalização da mesma não produz ganhos políticos. Mais simbólico seria cobri-las com um lençol branco, aludindo ao branqueamento do outro lado da história. 

Concluindo, é devido o respeito ao direito aos símbolos nacionais, da mesma forma que é honesta uma consciência crítica da história, reconhecendo que do outro lado dos feitos marítimos houve a escravidão e destruição de culturas.

Cólofon

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