FerNão de Magalhães
nos céus de um mundo polarizado
Novembro 27, 2023
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Novembro 27, 2023
Novembro 02, 2023
Anielle Franco, ministra brasileira da Igualdade Racial, e irmã de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada por (ao que tudo indica) forças bolsonaristas, é, tal como a sua irmã foi, uma importante ativista antirracista, com uma trajetória académica significativa na área, nomeadamente na North Carolina Central University e na Florida A&M University, instituições historicamente ligadas ao pensamento negro.
O pensamento e a ação de Anielle Franco são marcados por uma tradição teórica rica conhecida por Teoria Crítica, concretamente a Teoria Crítica da Raça, na esteira da qual se desenvolve noções como “racismo estrutural”, “opressão racial” e “intersecionalidade”, categorias que permitem uma compreensão e ação sobre as dinâmicas racializadoras das sociedades humanas, em particular nas sociedades de passado colonial e esclavagista, nomeadamente os Estados Unidos da América, onde o racismo deteve e detém uma força normativa profunda, sendo ao mesmo tempo estrutural, sistémico, institucional e legal. Basta lembrar as leis Jim Crow e o impacto atual das mesmas. No entanto, devido aos trânsitos entre a Universidade e os movimentos sociais, a Teoria Crítica foi adquirindo uma dimensão politizada, já que ela se propõe a ser um instrumento de transformação social, o que faz com que as categorias deixem de ser instrumentos de análise e passem a ser pressupostos ideológicos.
Devido às mudanças nas sociedades ocidentais, em particular no eixo norte-ocidental, as batalhas dos movimentos sociais passaram a focar-se, sobretudo, em questões pós-materiais, tendendo a desligar essas questões de questões materiais como pobreza. A leitura é, evidentemente, de inspiração marxista (pensamento que, de resto, está na base da Teoria Crítica), considerando que é preciso mudar a superestrutura, concretamente a cultura, para que ela mude a estrutura social de base. É nessa esteira que vamos encontrar uma hiperatenção à linguagem e ao pensamento, que levam a uma crença de que a sociedade muda por decreto e por policiamento público (cuja manifestação é o cancelamento nas redes sociais). É por isso que a pensadora negra @pretaderodinhas vem salientando as incongruências do ativismo de Anielle Franco e a sua equipa. Em setembro, Marcelle Decothé, assessora de Anielle Franco criticou a “torcida” do São Paulo, através das palavras “Torcida branca, que não canta, descendente de europeu safade... Pior tudo de pauliste”, escreveu. No dia de ontem, a ministra afirmou que o termo “buraco negro”, o qual define uma região no espaço com campo gravitacional tão intenso que também absorve a luz, é “racista”.
O racismo é, inegavelmente, um problema endémico das nossas sociedades, que precisa ser combatido. É preciso uma política intransigente de reversão de lógicas enraizadas de segregação. Tenho as maiores dúvidas que esta dinâmica de inspiração marxista, que produz uma dicotomia racial estanque e absoluta, numa versão reciclada da “luta de classes”, que passa por uma ação sobre a linguagem, uma desconsideração contextual e por uma dinâmica de purificação social do dissenso – em que não basta ser antirracista, é preciso que se o seja de uma determinada maneira, que exclui inclusive ativistas negros desalinhados com um conjunto de dogmas – seja o caminho. De resto, já dizia McWhorter que esta lógica capturou as populações negras e lhes é prejudicial. Em nome da liberdade e da justiça social, aceito visões contrárias e que até possa estar enganado.
Agosto 31, 2023
O caso Rubiales tem sido explorado até à exaustão, explicitando um cruzamento entre machismo tóxico e exibição moral. Rubiales esteve muito mal, sobre isso não há a menor dúvida, manifestando uma cultura de impunidade e toxicidade masculina próprias de uma sociedade patriarcal. Por outro lado, o caso terá sido explorado ostensivamente pela imprensa, sobretudo por arrasto de um exibicionismo moral levado a cabo por puritanistas de uma nova ordem, alimentados pelo ego da exibição em praça pública.
Agosto 22, 2023
A propósito da notícia que dá conta que a música "Fat bottomed girls" dos Queen foi retirada da plataforma Yoto, por ser "imprópria para crianças", ocorre-me dizer que vivemos um tempo de um ímpeto purificador social, ou de outra forma: de vários ímpetos. Eles manifestam-se na tentativa de expurgar vícios “morais” na ânsia que criar uma sociedade nova, um jardim do Éden terreno, cuja materialidade doutrinária vai do radicalismo cristão que procura recriar uma sociedade do casal heterossexual que vai à igreja ao domingo, temente a Deus e odioso da diferença, até à Igreja da Nova Sociedade dos Reencantados do Mundo, que pretende proteger as crianças num mundo de “ursinhes carinhoses”. Ambos querem expurgar a sociedade uns dos outros, da diversidade de pensamento, vendo o mundo numa batalha espiritual entre o “bem e o mal”, num maniqueísmo primário, enquanto justiceiros, uns da justiça social e moral, mas pós-material, e outros da justiça moral onde o amor ao próximo é mesmo ao próximo, i.e., àquele que se parece consigo.
image © FlorenceD-pix
Julho 27, 2023
O ator Kevin Spacey foi ilibado das nove acusações de crimes sexuais. Os julgamentos públicos, as correntes de purificação social, os atos de purga, são todos explicados pelas teorias de comportamento de massas. Quando isso está aliado a um contexto em que a secularização deu lugar a uma nova moral social de teor puritanista, cozinhado no lume de teorias sociais que tornam as categorias analíticas em categorias políticas, temos um caldo social entornado. Facto é que neste caso, como no caso dos políticos julgados pelo tribunal da opinião pública e depois ilibados nos tribunais competentes, a mancha no caráter fica e os danos são irreversíveis.
Março 21, 2023
A obra de Enid Blyton marcou a primeira metade do século XX, em particular com as séries "Os Cinco" e "O Clube dos Sete", obras de literatura infantil de aventuras que inspiraram outras gerações seguintes, como "O clube das chaves" ou "Uma Aventura". A obra de Blyton não passou ao lado de críticas, inclusive na época, pelas personagens estereotipadas, que reforçavam estereótipos de género e de classe social, pelo excesso de clichés sociais, bem como por um conservadorismo moral, político e educacional, que reforçava uma ordem tradicionalista e patriarcal, manifestas na defesa da obediência e da disciplina. Apesar disso, a obra de Blyton sobreviveu até hoje, com múltiplas edições em todo o mundo.
No entanto, sabe-se que em Inglaterra, no Condado de Devon, inúmeras bibliotecas estão a esconder a obra da autora, em especial as versões mais antigas, sendo necessário solicitar os mesmos, acompanhados de um aviso de linguagem potencialmente ofensiva. Somos, então, convocados para um debate em curso, sobre a pertinência de se proibir ou censurar livros e obras literárias. O argumento central, a favor dessa política de cancelamento literário, baseia-se na perpetuação de estereótipos de género, racismo, xenofobia, gordofobia e preconceitos de diversa ordem, que seriam legitimados pela literatura e que teriam um impacto negativo nas crianças. O argumento não é despiciente, mas, no meu entendimento, padece de dois vícios de substância: primeiro, integra uma luta cultural e espiritual de purificação da sociedade, que visa transformar a mesma por decreto e por censura, acreditando que a mudança nas mentalidades, em direção a uma sociedade mais inclusiva, se faz por campanhas de proibição, censura e cancelamento, sem considerar que essa atitude alimenta uma reação contrária; em segundo lugar, tem o vício de – ao impedir o acesso à informação e à obra – de agir sobre a sociedade de um modo paternalista, infantilizando os demais concidadãos, tomando-os por incapazes de ter um olhar crítico sobre a realidade e a literatura, e, no plano educativo, por fomentar uma geração de crianças criadas numa redoma moral, como “flores de estufa” ou snow flake, julgando que as impedir de ler palavras como “gordo”, “negro”, ou outras, as educa para a inclusão, quando na verdade, face à realidade social muito mais complexa com que têm de lidar, porque são confrontados com um mundo onde estereótipos e preconceitos prevalecem, se encontram inaptos para a sobrevivência, sendo encaminhados para a angústia e a incapacidade de lidar com desafios.
É curioso, portanto, que o ímpeto moralizador social não raras vezes se faça acompanhar por um modelo educacional permissivo e helicóptero, em que os pais/encarregados de educação deixam de assumir um papel ativo na educação das crianças, estabelecendo regras e preparando-as para os desafios de uma sociedade onde os valores são plurais e conflituantes, onde não basta pedir para ter, para se empenharem numa mudança social por decreto e por mecanismos censórios.
Nesse sentido, parece-me mais útil continuar a permitir o acesso à obra de Enid Blyton e outras, sem censura, acompanhando a leitura de uma contextualização (sobre um período com outras normas e valores) e de uma discussão sobre o carácter problemático de determinados elementos, sem deixar de apreciar o valor literário. Todavia, este parece ser um caminho mais complexo, que exige maior empenho educativo. É muito mais fácil infantilizar os sujeitos e censurar a literatura.
Janeiro 03, 2023
A separação entre Estado e Igreja, como processo de constituição das democracias liberais, abriu o caminho para a secularização social e o “desencantamento do mundo”. A ausência de uma religião civil nas sociedades ocidentais permitiu o surgimento de novos roteiros espirituais, tanto por via de inserção noutras comunidades religiosas convencionais, quanto através de um despertar espiritual baseado numa visão holística da espiritualidade, que a partir da individualidade liberal abriu a janela para a experiência de si mesmo como sujeito espiritual, aqui e agora, híbrido e segundo os interesses do momento. A esse despertar espiritual deu-se o nome de Nova Era.
Ora, à margem desse despertar imaterial, ligado à experiência individual do sujeito-alma, deu-se um outro despertar político, baseado na experiência de si enquanto sujeito-opressor e sujeito-vítima, que produziu uma nova forma de religiosidade ocidental, mais intelectual, mais urbana, burguesa, que não perdeu, todavia, a condição de confissão ou comunidade espiritual. Falo do movimento woke, o qual apresenta uma estrutura similar a uma igreja cristã, contendo a culpa como mobilizadora da autoflagelação e da necessidade de expiação, uma boa nova que se apresenta como uma descoberta extraordinária e que é preciso levar aos que não a conhecem, o ímpeto de conversão paternalista, uma performance ritual coletiva, voltada às grandes marchas, e uma individual através das redes sociais, um desejo de purificação da sociedade, atitude de transcendência que vai além do clássico combate de ideias para veicular a verdade única, a presença de profetas e de um povo eleito, a existência de dogmas inquestionáveis, um sentido de pertença superior de quem está numa missão espiritual.
Bem vistas as coisas, por mais desencantamento do mundo que tenha existido e da laicização que se sucedeu, o processo de despertar ou de reencantamento mantém todo o manual cristão, património cultural e religioso do Ocidente. Quando olhamos os movimentos políticas encontramos igual natureza confessional, com um líder messiânico (profeta), uma boa nova, um povo eleito, um sentido de missão espiritual que se traduz num combate cultural. O que difere é a natureza abrange do movimento, sociologicamente diversificado.
Torna-se claro que o reencantamento do mundo é um processo em curso, que inclui o retorno às igrejas cristãs por via de uma agenda conservadora ligada em grande parte ao movimento populista, o movimento woke e a luta pela dignidade dos oprimidos através da purificação dos opressores, sem esquecer os mais espirituais Nova Era, voltamos exclusivamente ao individualismo espiritual e à experiência estética de reinventar-se dentro do caleidoscópio religioso do mundo.
Outubro 11, 2022
Fevereiro 15, 2022
Decorre a hipótese de os 7 anões desaparecerem da história da Branca de Neve, por motivos de inclusão. Ora, os anões fazem parte da cultura nórdico-germânica popular, como sabemos pela mitologia do Anel dos Nibelungo (embora nem sempre apresentados como tal). Esta história, recuperada pela Disney, tal como outras, pertence a esse eixo do imaginário cultural desde, pelo menos, a Idade Média, sendo, eventualmente, anterior, do período das ditas invasões "bárbaras" que ditaram o fim do Império romano do Ocidente. No meu entendimento, trata-se de histórias, contos populares e mitologias ricas que o lastro cristão no Ocidente não conseguiu apagar e que merecem ser preservados.
Noutro patamar, a batalha cultural trazida pelas políticas identitárias de esquerda e direita, quando levadas ao radicalismo impõem, forçosamente, a derrogação da liberdade e a coercibilidade de uma conduta. Neste caso, o projeto de inclusão ganha uma dimensão incompreensível, muito próxima de uma política puritana. Quando se transforma a política de inclusão como necessária correção de assimetrias e justiça social em algo absoluto, corremos o risco de esvaziar histórias, narrativas, práticas sociais e direitos de liberdade e, mais provavelmente, cair no ridículo. Em rigor, parece-me muito mais inclusiva a presença dos anões na história e bem mais preocupante seria o estereótipo da bruxa má cujas origens remontam ao combate da Igreja ao sagrado feminino e à independência das mulheres.
Dezembro 12, 2020
O poema recitado por Amanda Gorman na cerimónia da tomada de posse do presidente estadunidense Joe Biden estava previsto ser traduzido, para holandês, pela escritora Marieke Lucas Rijneveld, com o aval da primeira. No entanto, um artigo de Janice Deul, jornalista e ativista negra, no jornal Volkskrant, fez com que Marieke desistisse, face à onda de críticas. Janice Deul argumenta que a tradução do poema deveria caber a "um artista local, jovem, uma mulher assumidamente Negra”. Eventualmente ela mesma, Janice Deul.
É importante ter presente, claro, que tal como Doris Sommer e outros autores mostram, há sentimentos e experiências que estão racialmente circunscritas. Mas mesmo Sommer, autora branca, é capaz de traduzir e inscrever as circunstâncias negras na literatura. É por isso que queiramos ou não, a reação de Deul e afins é populismo de esquerda. Ao radicalizar as questões raciais esvazia-as de conteúdo e impede a simpatia de fora. Ironicamente, o que os movimentos de militância racial radical fazem é apropriar-se de um elemento cultural judaico, a "pureza", para construir o seu discurso e imaginário populista racial. Não é por acaso que a sua narrativa sobre "apropriação cultural" é a versão inversa da autenticidade do nacionalismo. Tanto uma quanto a outra desconsideram o mais elementar aspeto das culturas: o hibridismo. Acresce ainda que uma parte significativa das culturas africanas sempre observaram os elementos culturais exógenos pela ótica da mais-valia, da eficácia simbólica e efetiva, estando livres da "pureza", da autenticidade, categorias próprias do pensamento judaico-cristão.
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